23 de dezembro de 2024
Publicado em • atualizado em 17/10/2021 às 20:00

Sindemia e a tempestade perfeita: jornalista explica como Bolsonaro produziu múltiplas crises ao longo da pandemia

César Calejon explica como Bolsonaro criou uma tempestade perfeita para elevar tensão sobre diversas crises no Brasil (Foto: Divulgação)
César Calejon explica como Bolsonaro criou uma tempestade perfeita para elevar tensão sobre diversas crises no Brasil (Foto: Divulgação)

O jornalista e escritor Cesar Calejon há algum tempo se debruça em pesquisar a ascensão do bolsonarismo no Brasil e durante a pandemia dedicou parcela dos seus estudos a investigar sobre a condução do presidente da República, Jair Bolsonaro frente à crise sanitária. O resultado deu origem ao livro lançado na última sexta-feira (15/10): “Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia Covid-19 no Brasil”, publicado pela Editora Contracorrente.

Calejon é da tese que Bolsonaro e sua militância ao longo da gestão da pandemia, além da crise sanitária, acentuaram os problemas políticos, sociais e econômicos. “Sindemia significa isso. Múltiplas crises”, destacou em entrevista ao Diário de Goiás. “Todas essas crises produziram um cenário caótico dantesco de tempestade perfeita para o país”, explicou. 

“Sindemia no contexto do trabalho, remete a essa posição no qual o país se encontra atualmente que não se trata exclusivamente de uma crise sanitária. Você tem todas essas outras crises interagindo simultaneamente o que forma portando um contexto muito mais amplo e mais complexo”, ponderou explicando o cerne de “Tempestade Perfeita”. Em conversa com o jornalista Domingos Ketelbey, o Calejon explica sobre dá detalhes e os tons dessas múltiplas crises mas também fala sobre outros assuntos: o populismo dos presidentes da República, a previsão de um futuro disruptivo para a democracia no Brasil e em países que avançam para a extrema-direita,

Domingos Ketelbey: Como Bolsonaro cria essa tempestade perfeita?

Cesar Calejon: Fundamentalmente nesse trabalho eu abordo o seguinte raciocínio: o bolsonarismo criou uma crise institucional com múltiplas dimensões, sobretudo, o enfrentamento a própria pandemia. Quais são essas dimensões? A primeira, é dentro do próprio governo federal. Por isso você vê com muita frequência o vice-presidente da República [Hamilton Mourão] dizendo que gostaria de participar de reuniões ministeriais e o Bolsonaro dizendo que o Mourão atrapalha. É por isso que você viu o deputado federal da base governista indo a público, pasme, para denunciar esquema de corrupção durante processo de aquisição da vacina. Enfim, a primeira dimensão dessa crise é dentro do próprio governo federal.

A segunda dimensão é entre os níveis federativos. Porque? Na ânsia de se livrar da responsabilidade de reagir à pandemia, o Bolsonaro e o bolsonarismo tentaram culpar os governadores estaduais e os prefeitos municipais. No momento que a gente precisava de uma união estabelecida e não por acaso o nome é União, o bolsonarismo criou uma fissura entre os entes federativos. 

A terceira dimensão dessa crise institucional criada pelo bolsonarismo com os outros poderes da República. Então, o governo federal nessa ocasião personificada pelo bolsonarismo com o Legislativo e o Judiciário,e ntão você vê isso muito claramente na CPI, nos embates do STF que é a Corte Constitucional Brasileira, enfim com os outros poderes da República. 

E a última dimensão dessa crise constitucional é a própria sociedade internacional. Na tentativa de se manter fiel ao trumpismo, o bolsonarismo brigou com o mundo inteiro. Com a China, com o presidente da Argentina, disse que usaria polvora contra o Joe Biden. Fundamentalmente brigou com o mundo inteiro num momento que a gente precisava de insumo para produzir vacina, reagente para fazer testagem em massa. Esse é o raciocínio central.

DK: A tática de atacar bodes expiatórios, o ataque a governadores e imprensa é comum entre políticos populistas. Outros presidentes também o fizeram. Lula também fez diversos comentários críticos a Globo e veículos de imprensa. O que faz Bolsonaro e o bolsonarismo tornarem-se tão especiais e perigosos nesse momento que vivemos?

CC: Eu te diria que fundamentalmente se você analisar a materialidade dos governos Lula. O Lula nunca atacou nenhum outro governador chamando o cara de bosta. Fazendo alusões homofóbicas considerando o tipo de calça que determinado governador usa. Durante os governos petistas, apesar das críticas que seguramente cabem, o Ministério Público teve mais autonomia, a Polícia Federal ganhou mais autonomia, mas nunca existiu esse tipo de ataques sobretudo com essa virulência e banalidade. Esse é o primeiro ponto que eu te destaco. O segundo é: nessa ocasião tem uma crise pandêmica estabelecida. Evidentemente, o bolsonarismo precisaria ter sido mais cuidadoso no sentido de deixar as diferenças de lado e somar forças do governo federal com o governo de São Paulo, do Rio de Janeiro. O que o bolsonarismo fez foi absolutamente o contrário disto. Com frequência eu vejo essa comparação surgindo tentando dizer que Lula e Bolsonaro são tão populistas quanto. Veja: em alguma medida todo o governo federal, presidente que ascente a chefia do poder executivo precisa de elementos populistas. Senão, o cara não ganha ressonância para ser eleito. Você não vai conseguir ter 45, 50, 60, 70 milhões de votos se você não se comunicar das massas populacionais. Nessa medida, não tem como escapar disso. Isso é uma coisa. Agora, os elementos que se usam para fazer populismo. É aí que coisa pega. Bolsonaro utiliza ódio, elitismos históricos culturais, misoginia, todo o tipo de sentimento que de alguma forma acaba por acirrar a vida sócio-política da Nação. Não é o caso do Lula. Se você vê o tipo de populismo que o Lula também usa, ele fala do combate à fome, da superação de um processo de miséria. Tem elementos de populismo? Tem. Você pode buscar em qualquer democracia consolidada no mundo e o cara que ascende à presidência, tem de usar elementos de populismos. Não tem como escapar disso. Se você não falar diretamente com o coração das massas populacionais, você não será eleito. Agora, os elementos que norteiam e organizam a tua proposta populista é isso que faz a diferença. O Bolsonaro organiza o populismo dele em base no ódio, no bandido bom é bandido morto, na filha que nasceu porque fraquejou, que quilombola não serve nem para procriar…

Tempestade Perfeita: livro de César Calejon debruça sobre bolsonarismo e explica sindemia da Covid-19 no Brasil. (Foto: Divulgação)

DK: Numa situação hipotética com Bolsonaro deixando a presidência, o que será do bolsonarismo?

CC: Não acaba. No “Tempestade Perfeita” eu cito o seguinte: sobretudo, por exemplo, o anti-petismo ainda está presente na sociedade mas arrefeceu. A sensação de anti-sistema sobre o qual o bolsonarismo capitalizou dizendo que ele moralizaria a política e que ele não era um membro da política tradicional. Isso também arrefeceu, porque o bolsonarismo caiu no colo do centrão. Tudo isso está colocado a essa altura do campeonato. O uso de novas ferramentas de estratégia de comunicação também perde eficácia. Vai ser reformulado mas de alguma forma ele perde a potência à medida que as pessoas vão sendo ‘vacinadas’, entre aspas contra esse tipo de abordagem. É muito fácil iludir a pessoa com um truque quando você faz pela primeira vez. Se você repete, a pessoa vai percebendo o que você faz para enganá-la. Esses três elementos ainda estão presentes mas perderam força. Os dois elementos complicadíssimos são: elitismo histórico cultural e dogma religioso. Isso dará uma sobrevida, talvez, não necessariamente pelo bolsonarismo com esse nome. Mas essa proposta sócio-cultural e movimento de extrema-direita vai continuar existindo não só no Brasil, mas provavelmente, no mundo inteiro. Porque? Porque é uma construção e é um processo regular. Existem legados histórico-culturais do Brasil Colônia e Império e acabaram sendo constituinte da República. Não tem como superar um processo secular de construção e arranjo social em 5, 10, 15, 50 anos. Não pode ser feito nesse período. Se a gente trabalhar com emancipação, educação libertadora, teorias críticas é um processo para os outros 500 anos. Isso não será mudado dentro dos próximos anos. 

DK: Como o dogma religioso entra nessa questão?

CC: O dogma religioso que é um dos aspectos que eu discuto e vale a pena dizer: a crítica do meu trabalho não é contra nenhuma religião ou doutrina, é contra o dogma religioso no cerne da vida sócio política do país, isso sim é muito deletério, porque a gente viu como teocracias funcionam, em última análise, não foi saudável sobretudo para grupos que não representam a classe hegemônica do país. Então, de muitas maneiras, é esses dois pilares que proporcionaram a ascenção e manutenção do bolsonarismo que vão continuar presentes. Sobretudo porque o cunho religioso vem ganhando muita força. Nos últimos capítulos do “Tempestade Perfeita”, eu dou conta do seguinte, se a gente continuar subvertendo o jogo democrático cada ve que o resultado das urnas não agrada determinados grupos. Se a gente continua estimulando o dogma religioso, se a gente aceitando que grupos de milícias ocupem lugar do estado. Você vê lugares no Rio de Janeiro, nem na periferia, mas vê prédios no centro do Rio de Janeiro que o poder público não entra mais. Quem domina é a milicia. Se a gente continuar permitindo que todas essas pretensões que te citei se desenvolvam, talvez em 10, 15, 20 anos não tenhamos mais o Bolsonaro e o bolsonarismo, mas eu argumento que o Brasil se encaminha para se tornar uma teocracia-miliciana fundamentalista religioso. Esse de fato, é o maior risco que a gente enfrenta e a gente precisa ficar atento para isso. Me parece que talvez o bolsonarismo e Jair Bolsonarismo não estejam mais aí, mas o Bolsonaro é uma expressão mais virulenta desse tipo de proposta sócio-político pode emergir de tudo isso que eu acabei de salientar. 

DK: Você fala em “teocracia-miliciana-fundamentalista-religiosa”. O cenário, pegando um termo religioso neste caso, seria um tanto apocalíptico?

 CC: É uma possibilidade, eu diria que sim. Mas eu não sei se utilizaria esse adjetivo ‘’apocalíptico’’ porque isso se torna pejorativo. Mas, se eu lhe dissesse em 2013 quando as mídias hegemônicas começam a estimular a insatisfação popular, começam a dizer que a Dilma é isso. Quanto é que estava o dólar? Quanto estava o preço da gasolina? Quanto estava o preço da cesta básica?  A questão não é de esquerda ou não. Existe materialidade histórica relacionada a isso, independentemente de onde eu estacionei minha régua no espectro político ideológico, existe uma materialidade. Quanto estava o dólar naquela ocasião? Faça uma pesquisa e veja como estava isso em 2013 quando essa mídia hegemônica começa a estimular esse processo de desestabilização, e veja como está o país hoje. Então assim, apocalíptico? Pode ser. Se você pegar uma pessoa que tem três, quatro filhos em casa, e rouba uma coca cola com um miojo e essa pessoa vai presa, aqui o apocalíptico já chegou. Se você pegar gente que está com fome para comer osso hoje, e isso está na base de 50 milhões de pessoas que usam a insegurança alimentar, significa passar fome. Se você pegar a pessoa que está passando fome hoje, 50 milhões de brasileiros, esse cenário apocalíptico já chegou. Pode ser que a gente continue estimulando tudo isso. Então, eu não sei te dizer se usaria esse adjetivo [apocalíptico], mas é um risco muito grande de acontecer.

DK: Muitos pesquisadores falam em crises democráticas em diversos países do mundo que arrastam-se de anos para cá. Você vê o regime democrático brasileiro em ameaça?

CC: Existe uma racionalidade neoliberal, que vem se consolidando ao longo do século XX. Essa racionalidade começa com a normalização da concorrência desenfreada com a característica normal da organização social. De forma resumida, geralmente as pessoas associam o neoliberalismo à política macroeconômica. Você tende a pensar em uma série de coisas que são adotadas por governos no campo econômico. Mas, o neoliberalismo está muito além disso, ele é uma racionalidade que organiza não só as condutas dos governos, como também as condutas dos governados. O neoliberalismo organiza a forma como a própria sociedade em si, enxerga o que é natural. Ao longo do século XX, essa naturalização faz o seguinte: organiza modelo de estado. O estado mínimo, com essa racionalidade neoliberal não se cria. Precisa de um estado fraco, precisa de um estado que se submeta a essa racionalidade neoliberal. No caso do Brasil, você tem um estado sobretudo debaixo de Jair Bolsonaro, que é promotor primário, que atua como satélite americano na América Latina, e que de muitas maneiras não tem nenhuma vontade de emancipar sua própria população. Por isso que você vê hoje, 20%, 30% da população masculina trabalhando com moto em fastfood o dia inteiro com motos caindo aos pedaços, e o que ele ganha no dia não dá para pagar a comida que ele leva nas costas. Vai buscar isso no capitalismo, vai para a Europa Ocidental, para Califórnia, e você vai ver se encontra esse tipo de coisa, não encontra. Porque apesar da exploração que se materializa, eles não deixam a população sofrer este tipo de situação.  Sem dúvidas, a democracia corre risco por conta dessa racionalidade que normaliza a concorrência mantida com o primeiro parâmetro da organização social.

Domingos Ketelbey

Jornalista e editor do Diário de Goiás. Escreve sobre tudo e também sobre mobilidade urbana, cultura e política. Apaixonado por jornalismo literário, cafés e conversas de botequim.