06 de setembro de 2024
Publicado em • atualizado em 16/07/2021 às 16:53

O luto ainda grita: Associação busca memória e justiça às vítimas da Covid-19

O Brasil beira a marca das 540 mil vidas perdidas pela Covid-19 (Foto: Amazônia Real)
O Brasil beira a marca das 540 mil vidas perdidas pela Covid-19 (Foto: Amazônia Real)

Antes da pandemia, haviam histórias. Hoje, beirando 540 mil vidas perdidas pela Covid-19 é difícil imaginar quem não tenha tido um pai, mãe, tio, primo, vizinho, amigo, colega de trabalho, do primário, sogro, cunhado, avô, avó, filho ou filha que morreu após se contaminar com a doença. Levantamento feito em abril pela CNN Brasil mostra que sete em cada 10 brasileiros conhecem alguma vítima fatal dentro do círculo de relacionamentos.

Com variantes disseminadas, a Covid-19 parece implacável: o empresário Carlos Bueno, 48 anos, diretor do Diário de Goiás, não teve mais que 12 dias do diagnóstico ao óbito. Um tio de minha esposa, 59 anos, também não teve muito tempo. O contador Augusto, aos 41 anos, teve sete dias de vida. Além da velocidade ao óbito, outras similaridades: as famílias não puderam dar o adeus num túmulo aberto, nem receber o abraço dos mais próximos e a vacinação de todos estava às portas. Se sobrevivessem, todos já estariam imunizados com, no mínimo, a primeira dose.

As dores e os lutos (ou a falta dele) motivaram, em abril, a criação da Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid19 – Vida e Justiça. O objetivo, de acordo com a entidade, é “articular nacionalmente uma grande rede de apoio e solidariedade às vítimas vivas e aos familiares das vítimas fatais da Covid-19. A Associação Vida e Justiça é um espaço de solidariedade humana, de defesa e promoção da vida, de articulação de políticas públicas de apoio e reparação das vítimas e trabalha pela responsabilização de gestores públicos negligentes com a pandemia.”

Em junho, a seccional de Goiás foi criada e desde então, já conta com 50 pessoas entre lideranças políticas, de diversas frentes religiosas e da sociedade civil em geral. Todos perderam alguém para a Covid-19, seja amigo, parente ou familiar. Em comum, ninguém teve a oportunidade de levar o corpo do ente mas buscam além de encontrar aqueles que foram negligentes na gestão da crise sanitária, eternizar a memória dos que se foram. Ainda mais: cobrar do poder público prevenção às futuras epidemias, sejam elas globais ou não. São muitas as frentes que a entidade pretende atuar.

“O intuito da Associação é apoiar vítimas vivas e de pessoas que se foram em decorrência da covid-19, se tornando uma grande rede nacional de solidariedade, apoio e defesa da vida”, resume a comunicadora e cientista social Aymê Virgínia uma das coordenadoras locais da entidade. “Queremos falar da importância da memória, da solidariedade, da denúncia das mortes, mostrar o aumento da miséria e desigualdades sociais perante toda a negligência do Estado”, explica Aymê que é suplente do movimento no Brasil e faz parte do núcleo de políticas públicas e comunicação da seccional em Goiás.

Falta de políticas públicas na pandemia

Aymê pondera que um dos principais elementos que o movimento busca, inclusive, com a participação de parlamentares, é a criação de políticas públicas efetivas. Na avaliação dela, quase nada foi feito nesse sentido. “O direito ao isolamento não foi a um todo, poucas pessoas conseguiram de fato fazer o isolamento. A ausência de um plano estratégico e econômico por exemplo que pudesse atender a todas as pessoas que neste momento não puderam sair para trabalhar, auxílio emergencial digno que atendesse toda a população permitindo assim que esses pudessem continuar o isolamento em suas casas”, pondera.

Em sua avaliação, o estado deveria indenizar, inclusive, as vitimas que foram contamindas e conseguiram sobreviver. “Os reflexos dessa pandemia não vão cessar de imediato, é como se o vírus e as suas consequências nunca mais cessassem, tanto nas questões de saúde, psíquicas, financeiras e da perda e luto.”

Antes do luto: a vida

Antes do luto, existia uma vida em seu limiar. Aos 41 anos, Augusto César Ferreira de Sousa já tinha superado uma batalha em decorrência da diabetes. Chegou a ser intubado por conta de um problema pulmonar antes de ser contaminado com a Covid-19. Reservado e cuidadoso com sua mãe e a irmã mais nova, Aymê, o contador já vislumbrava dias melhores com a alta médica. 

Pouco antes de voltar para a casa, no entanto, veio a contaminação. Do diagnóstico ao óbito foram menos de uma semana: quatro dias suficientes para a Covid-19 evoluir levando Augusto ao óbito. “Parece um filme de terror que nunca mais terá final, tudo começa com as ausências, a luta para se ter notícias, a falta do contato durante a internação, as inúmeras negligências, a dor do luto não vivido, as despedidas que não aconteceram e o sentimento de tamanha revolta pelo fato de que a vacina estava aí, mas essas vidas valeram 1 dolar de propina”, conta Aymê fazendo referência às investigações em andamento na CPI da Covid-19. 

Aymê Sousa quer Justiça em torno da morte do irmão, vítima da Covid-19. Ela é uma das articuladoras do Movimento Vida e Justiça em Goiás (Foto: Acervo Pessoal)

Augusto foi à óbito no dia 16 de maio, exatamente dois meses atrás. No dia 20, quatro dias depois, os grupos com comorbidades, o qual ele estava inserido, começariam a ser imunizados contra a Covid-19. “Cheguei a baixar o formulário, íamos levar ao médico para que ele fosse preenchido e fosse vacinado mas não deu tempo”, rememora. “O vírus foi e é muito cruel, por isso eu lanço o alerta para que as pessoas não deem mole a ele, que mesmo vacinadas elas continuem seguindo os protocolos de biossegurança, mantendo o isolamento, e usando a máscara! Isso aparentemente só terá fim quando de fato as pessoas compreenderem que só venceremos o vírus tanto o que não enxergamos quanto o que está eleito se agirmos com consciência e coletivamente”.

Completando dois meses da partida do irmão, Aymê relembra como era o relacionamento com o irmão.“Amor de irmã caçula com irmão mais velho numa família em que a parte paterna quase sempre foi ausente, numa família em que a mãe peitou o mundo inteiro para criar 4 filhos sozinha. Ele sempre cuidadoso, tanto comigo, quanto com nossa mãe que hoje padece pela perda do filho que tanto amou, zelou e abrigou nos abraços e afagos de mãe. Augusto era um cara trabalhador, caseiro, gostava do simples e de sorrir pros dias que às vezes teimava em nos entristecer.”

(Por Domingos Ketelbey, jornalista e editor do Diário de Goiás)

Domingos Ketelbey

Jornalista e editor do Diário de Goiás. Escreve sobre tudo e também sobre mobilidade urbana, cultura e política. Apaixonado por jornalismo literário, cafés e conversas de botequim.