Na retrospectiva das eleições municipais em 2020, há dois destaques envolvendo a participação de mulheres durante o processo: o embate que a vereadora Cristina Lopes travou com (ou contra) o seu próprio partido para ter seu nome garantido na disputa para a prefeitura de Goiânia e o outro, com as eleições do primeiro turno já sucedidas, a dificuldade que as próprias legendas tiveram em atingir a cota de gênero de 30% nas candidaturas para vereadores: sete delas, ainda correm o risco de perder os mandatos eleitos, tendo os votos anulados por conta do descumprimento.
Todo esse cenário nos lembra que apesar das representarem mais de 51,8% da população e mais de 52% do eleitorado brasileiro, as mulheres ainda são minoria na política. Em Goiânia, com cinco candidatas eleitas são 14,3% da representatividade local. A corrida eleitoral para a prefeitura que teve número recorde de candidatos: foram dezessete nomes, mas apenas três mulheres tentavam à disputa para o Paço Municipal: a delegada Adriana Accorsi (PT), a professora Manu Jacob (PSOL) e a vereadora dra. Cristina Lopes (PL).
“As agremiações partidárias continuam sendo agremiações muito misóginas muito masculinas e machistas de modo que não permitam com que a mulher ingresse na política”, explica Nara Bueno, uma das únicas advogadas eleitoralistas em atuação na capital goianiense. Foi ela quem conduziu e deu forças para que Dra. Cristina pudesse travar uma batalha contra o Partido Liberal que após alçar a vereadora como pré-candidata, acabou migrando o apoio para a coligação vitoriosa de Maguito Vilela, encabeçada pelo MDB.
Apesar de todos os entraves jurídicos, Nara conseguiu fazer com que o nome da vereadora aparecesse na urna no dia 15 de novembro, quando foi realizado o primeiro turno das eleições. Dra. Cristina foi a sexta candidata mais votada tendo 18.280 votos. “Fiquei bastante contente em ser a ferramenta entre a Justiça e a política em ter viabilizado o direito democrático da dra. Cristina em participar deste processo. Foi muito injusto, foi um ato de violência do partido com ela. Fiquei feliz de por ter contribuído e fazer essa correção e e al ter participado”.
Barreiras invisíveis que emplacam
Em entrevista por telefone, a advogada tentou traçar algumas análises para a desigualdade de condições que as mulheres passam no caminho para tentar pavimentar suas candidaturas. Autora do livro “Pequeno Manual das Mulheres no Poder – o que você precisa saber para participar da política brasileira”, Nara é uma incansável pesquisadora sobre gênero e democracia. A advogada tenta traçar uma série de barreiras invisíveis que impedem ou desestimulam mulheres no campo e esfera política.
Uma delas se dá ao estranhamento cultural existente quando uma mulher rompe as barreiras domésticas e passa a atuar em outros campos de protagonismo, o que também pode ser chamado de misóginia estrutural.
“A gente tem uma misoginia estrutural e generalizada, que é aquela situação onde a mulher é vista com estranhamento a partir do momento que ela quer ocupar um espaço que não seja solo doméstico, porque por exemplo, quando a gente vê uma mulher ocupando espaço doméstico, isso não causa estranheza, então a mulher que cuida dos filhos, cuida da casa, ou trabalha a home office porque é um trabalho com menos horas por dia mais maleável, só que a gente não estranha”, pontua Nara. Esse estranhamento é inexistente pois estão dentro das ‘fronteiras domésticas’ que estruturaram mulheres já desde muitas décadas.
No entanto, há um estranhamento quando há o rompimento desta barreira. “A partir do momento que a gente rompe essa fronteira doméstica, causa estranhamento, e aí pode ser em qualquer área, pode ser de uma assessora parlamentar, pode ser de uma coordenadora de campanha, pode ser de uma advogada eleitoralista, pode ser uma médica, e aí vai, uma jornalista, qualquer outra profissão que rompe essa fronteira doméstica”
Democracia custa caro e o financiamento de candidaturas femininas nem sempre ocorre como se deve
Nara lembra que política tem um custo que envolve não apenas dinheiro, mas também tempo. “Então pra participar de política e para ter a mesmas condições, uma mulher tem que ser conhecida, reconhecida, só que para isso a gente tem que ter espaço, e para ter espaço a gente precisa também de dinheiro porque custa, ir na televisão custa, imprimir material custa, participar de programas de rádio custa, e custa em níveis diferentes e se tem complexidades diferentes”, explica. Logo, mais uma barreira invisível aqui: às vezes, para ir atrás de seu espaço, ela terá mais uma vez de romper as barreiras domésticas impostas.
Diversas candidatas em 2020 foram desistindo de suas campanhas. Esse foi um dos principais motivos pelos quais as legendas estão tendo a cota de gênero questionada. As agremiações políticas alegam que no dia do registro das candidaturas estavam de acordo com o coeficiente mínimo, mas o problema se deu durante o processo com a desistência das postulantes.
As candidatas alegam no entanto, que diversos compromissos não foram cumpridos, algumas sequer foram procuradas após a convenção que definiram as candidaturas. Sem suporte jurídico, financeiro e isoladas, elas acabam desistindo e ficam pelo caminho. No fim das contas, Nara comenta que isso é bem comum e reforça mais uma das barreiras invisíveis.
“Nós somos criados nessa cultura [machista] então está intrínseco na mente e essas barreiras invisíveis são todas essas. É o partidário, é o financeiro, então quem que vai tradicionalmente decidir sobre o dinheiro? um homem branco que já tem posse? Ou uma mulher, ainda que branca ? Mas vamos colocar a média brasileira: uma mulher negra sem posse, quem que vai poder investir na campanha? Então essas são barreiras invisíveis, embora seja muito difíceis da gente sistematizar né”, pondera lembrando que uma parcela considerável da população brasileira é constituída por mulheres negras.
Neste sentido, as cotas de gênero são fundamentais para que haja o mínimo de participação política.“Porque ela possibilita um mínimo de participação, porque em uma democracia representativa, é inaceitável que os eleitos, os representantes eleitos nessa democracia participativa não repita diretamente a condição demográfica real, então essa cota ela é importantíssima porque faz o mínimo, permite o mínimo de participação politica entre nossas políticas”. Haja vista que mulheres são a maioria do eleitorado e da população, é no mínimo estranho que não se sejam eleitas para cargos públicos, destaca.
Ela ainda ressalta que a lei poderia ser mais extensiva e alcançar as cadeiras do parlamento. “Ela devia ser cota de cadeirass no parlamento, como é no México por exemplo, e não deveria ser cota, deveria ser paridade, porque se a gente tem direitos iguais se nós somos isonômicos então nada mais correto do que termos o parlamento um executivo, enfim, 50/50”, conclui.