22 de dezembro de 2024
SÉRIE ESPECIAL

Revista Científica aponta relação entre agrotóxicos e leucemia em crianças do Cerrado e Amazônia

Artigo publicado na PNAS-USA, em agosto, mostra que mortes infantis por leucemia aumentaram com intensificação do uso de agrotóxicos, e relaciona com intoxicação pela água
Pesquisa avaliou impacto dos defensivos agrícolas em crianças do Cerrado e da Amazônia - Foto: Divulgação / Cenipa
Pesquisa avaliou impacto dos defensivos agrícolas em crianças do Cerrado e da Amazônia - Foto: Divulgação / Cenipa

Metade das mortes relatadas de Leucemia Linfoide Aguda (LLA) em crianças com menos de 10 anos, ocorridas nas regiões de Cerrado e da Amazônia, foi atribuída à exposição a defensivos agrícolas durante a intensificação das lavouras de soja. Esta parcela somou 123 crianças vítimas desse tipo de câncer no sangue. O número corresponde a 11 mortes por ano no período entre 2008 e 2019.

A conclusão foi apresentada em um artigo recentemente publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Trata-se da revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, uma das publicações mais respeitadas no universo da pesquisa científica mundial.

O artigo intitulado “Agricultural intensification and childhood cancer in Brazil(Intensificação agrícola e câncer infantil no Brasil) contém estudos realizados pelas pesquisadoras Marin Elisabeth Skidmore, Kaitlyn M. Sims e Holly K. Gibbs. Foi recebido pela revista em abril e aceito para publicação em agosto de 2023.

Universidade e prêmio financiaram estudo

O estudo não considera estados e cidades, mas sim bacias hidrográficas. Ele utiliza dados de saúde, uso da terra, águas superficiais e demografia. Foi realizado com financiamento da Iniciativa de Saúde Global da Universidade de Wisconsin e Prêmio Henry Anderson III, voltado a estudos em Saúde Pública Ambiental e Ocupacional.

O artigo das pesquisadoras dos EUA que relaciona mortes de crianças por Leucemia nas regiões de Cerrado e da Amazônia à exposição a agrotóxicos foi indicado à reportagem do Diário de Goiás em novembro pela Doutora em mutagênese ambiental com foco em agrotóxicos e exposição ocupacional, Daniela de Melo e Silva. Ela coordena o Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Goiás (UFG). 

Goiás fora da amostra

Sexto maior consumidor de agrotóxicos do Brasil, Goiás foi excluído da amostra principal e foi analisado em separado. Isso é justificado na pesquisa devido à presença do Distrito Federal, que altera significativamente o cenário econômico e de acesso ao tratamento oncológico em comparação aos demais estados.

Mas não só por isso. É o que aponta análise do trecho da publicação sobre Goiás realizada com o apoio do físico médico Murilo Assunção. Ele é mestrando em engenharia e sinais biomédicos da Universidade Federal de Goiás e especialista em radiodiagnóstico pelo programa de residência da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Leia os detalhes sobre Goiás ao final.

Óbitos infantis por LLA

O número de óbitos apontado (123) “representa aproximadamente metade de todas as mortes relatadas de LLA de crianças com menos de 10 anos no mesmo período”, aponta a pesquisa.

As autoras explicam que o estudo se concentrou em crianças para excluir outros fatores de alto risco para câncer, como tabaco e álcool, consumido por adultos. A escolha de crianças aumenta a margem de segurança das conclusões em relação ao agente defensivo agrícola.

No artigo, informam que forneceram uma análise populacional da associação entre exposição indireta a pesticidas agrícolas e câncer utilizando 15 anos de dados (2004 a 2019).

Expansão da soja

O foco foi estudar a mortalidade por câncer infantil durante a expansão do cultivo especialmente de soja, e do uso de pesticidas nos biomas Cerrado e Amazônia do Brasil. O país, observam na publicação, “é hoje o maior consumidor mundial de pesticidas altamente perigosos e o segundo maior consumidor de todos os pesticidas”.

Elas apontam, por exemplo, que “a área cultivada com soja no Cerrado triplicou de 5 milhões de hectares em 2000 para 15 milhões de hectares em 2019. Na Amazônia, o aumento foi vinte vezes maior, à medida que a soja aumentou de 0,25 milhão para 5 milhões de hectares”.

Água contaminada

O trabalho utilizou dados geoespaciais sobre a rede fluvial do Brasil. E vinculou a mortalidade de crianças do Cerrado e Amazônia à exposição a agrotóxicosa na produção de soja a montante (antes) da bacia hidrográfica, e não à região administrativa (município).

“Este resultado indica que uma fonte primária de exposição é através do abastecimento de água contaminada. Nossos resultados apoiam nossa hipótese de que a exposição a pesticidas é o canal entre a expansão da soja e o câncer e que a principal fonte de exposição é através da contaminação por pesticidas no abastecimento de água”, ressalta o estudo.

A pesquisa encontrou uma relação positiva entre a produção de soja e as mortes pediátricas por LLA: “Um aumento de 0,10 toneladas de soja por hectare municipal está associado a uma probabilidade 0,2% maior de uma criança menor de 5 anos morrer de LLA e a uma probabilidade 0,3% maior de crianças menores de 10 anos”, estimaram.

O estudo se fundou na amostra principal com municípios da Amazônia e do Cerrado classificados como rurais pelas categorias do IBGE e com pelo menos 25% de cobertura da terra agrícola. Isto exclui os municípios que são urbanos ou altamente florestados que têm probabilidade de ter padrões de taxas de câncer diferentes da amostra de interesse.

Soja geneticamente modificada

Foram excluídos municípios fora dos biomas Amazônia e Cerrado porque já haviam estabelecido a produção de soja no início do período de estudo. Ou porque tiveram relativamente pouca produção de soja ao longo do período e urbanização e indústria significativas que representam um desafio para a identificação.

Além disso, foi considerada a produção a partir de 2004, ano em que a soja geneticamente modificada (GM) foi aprovada para uso no Brasil. “Esta soja GM é resistente a herbicidas, permitindo que os agricultores usem insumos químicos para controlar ervas daninhas sem danificar as plantas de soja em crescimento”. Anotaram as pesquisadoras no artigo que relaciona mortes de crianças por Leucemia nas regiões de Cerrado e da Amazônia, à exposição a agrotóxicos

Segundo elas, foi demonstrado que a soja GM aumentou o uso de pesticidas no Brasil, “especialmente o produto químico altamente perigoso glifosato, que está ligado ao aumento dos resultados adversos para a saúde”.

Conexão importante

Daniela de Melo e Silva, que coordena o Programa de Pós-Graduação da UFG, destaca que o estudo é novo e faz uma conexão importante.

“As conclusões despertam preocupações ao explorar a possível relação entre a intensificação da agricultura e o aumento de casos de leucemia linfocítica aguda em crianças de até 10 anos”, pontua.

Investigação de câncer em Goiás

A especialista da UFG também investiga o assunto com foco em população adulta. Por exemplo, ela realizou pesquisa em 1.500 prontuários dos anos de 2010 até 2021 do Hospital Araújo Jorge em Goiânia, unidade especializada em câncer.

A amostra relacionou tumores de cabeça, pescoço, língua, faringe, laringe, estômago e intestino em trabalhadores rurais. A pesquisa apurou que a maioria deles atuava em lavouras de Jataí, Rio Verde, Santa Helena, Silvânia e Goianésia.

Todos estes municípios têm lavouras com grande consumo de defensivos agrícolas. “Mais 30% dos casos eram de Jataí e Rio Verde”, acrescenta.

Uso racional

Ao analisar o artigo da PNAS que relaciona à exposição a agrotóxicosa as mortes de crianças por Leucemia nas regiões de Cerrado e da Amazônia, a pedido do Diário de Goiás, a pesquisadora ponderou, tal como as autoras dos EUA, que “esse não é um alerta para abandonar a agricultura, mas sim uma chamada para práticas mais seguras e sustentáveis”.

Daniela confirma que a pesquisa observou uma associação estatisticamente significativa com um maior risco de Leucemia Linfoide Aguda infantil. “Essa conexão levanta questões sobre os potenciais impactos dos agrotóxicos e outros fatores ambientais na saúde das crianças”.

PL do Veneno

Além disso, a doutora em mutagênese ambiental enfatiza que o estudo destaca a necessidade urgente de regulamentações mais rigorosas e melhores práticas na indústria agrícola. “A implementação de medidas que reduzam a exposição de crianças a substâncias prejudiciais torna-se imperativa para proteger a saúde da próxima geração”, pontua.

Ela lamentou, à época, que o momento não fosse favorável para tal. Isto porque o Projeto de Lei PL 1459/2022, que ficou popularmente conhecido como PL do Veneno – por propor maior flexibilização das normas regulatórias para agrotóxicos -, tinha sido aprovado pelo Senado Federal.

Quando a entrevista foi realizada, em novembro, o PL aguardava ser sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva o que aconteceu no fim de dezembro. Mas os vetos presidenciais apresentados contrariam essa previsão de maior flexibilização no registro de defensivos, por exemplo. Reportagens do DG vão abordar a questão nesta série especial.

Alerta para ações responsáveis

Para Daniela, o alerta promovido pelo estudo publicado na PNAS não busca apenas conscientizar, mas também mobilizar ações responsáveis.

“É um convite à reflexão sobre como podemos equilibrar as necessidades agrícolas com a preservação da saúde infantil. Ao promover uma agricultura mais segura, contribuímos para um futuro onde as crianças possam crescer em ambientes saudáveis e livres de riscos desnecessários”, conclui.

Amostra de Goiás

Goiás foi o único estado da área envolvida (Cerrado e Amazônia) a ser analisado fora da amostra principal da pesquisa. Ele aparece em um suplemento à parte.

O trecho relativo ao estado foi analisado a pedido do Diário de Goiás pelo físico-médico Murilo Assunção. Ele aponta que as autoras levaram em conta que municípios agrícolas rurais em Goiás são grandes produtores de soja. Têm uma média de 6% de área em soja, e produção de 0,19 toneladas por hectare. Isto em comparação com 3% e 0,11 toneladas por hectare na amostra principal (da qual Goiás não faz parte).

Por outro lado, as despesas com pesticidas por hectare em Goiás são comparáveis aos estados vizinhos. Mas no artigo elas concluem que o estado tem um uso de agrotóxicos que pode ser considerado mais eficiente em relação à produção agrícola.

Além disso, aponta o estudo das pesquisadoras norte-americanas, Goiás tem a menor porcentagem de municípios com água contaminada por defensivos. Isto sugere, afirmam, uma absorção mais eficiente pelos cultivos. Na amostra principal, elas observaram que a maioria dos casos de LLA tinham correlação com proximidade de fontes de água contaminadas por pesticidas.

A pesquisa informa ainda, que o acesso a tratamento de câncer, especificamente para Leucemia Linfoblástica Aguda (LLA), é alto em Goiás. Ou seja, as pesquisadoras consideram que há um aumento significativo no número de hospitais tratando pacientes pediátricos.

E esse aumento significativo no tratamento, ponderam, pode ter enfraquecido a relação entre a exposição a pesticidas e as mortes por LLA em Goiás no período estudado. Ou seja, há uma relação menos pronunciada entre área de soja e mortes por LLA em Goiás em comparação com outros estados na amostra.

Foco foi leucemia

Mas as pesquisadoras alertam que o estudo foi focado exclusivamente neste tipo de câncer. Ou seja, a correlação entre outros cânceres com a intensificação da pulverização para atender o avanço agrícola em Goiás não foi considerada, mas pode existir.

Outra informação relevante é que elas identificaram zonas de buffer para pulverização terrestre mecanizada. Tecnicamente, elas são zonas-tampão formadas por vegetação permanente para interceptar poluentes. Segundo as pesquisadoras, isso indica uma maior participação de instituições locais e estaduais na mitigação dos danos causados por pesticidas.

Repercussão

Veículos de comunicação como o Deustche Welle, Reuters, Brazilian Reports, The Daily Science e o Young Posts da China, entre outros, também repercutiram o artigo publicado na PNAS vinculando mortes de 123 crianças por Leucemia Línfóide Aguda nas regiões de Cerrado e da Amazônia, à exposição a agrotóxicos.

Diário de Goiás preparou série

Esta reportagem sobre artigo científico que sinaliza que mortes de crianças por Leucemia nas regiões de Cerrado e da Amazônia, foram atribuídas por pesquisadoras dos EUA à exposição a agrotóxicos, é a primeira de uma série. O Diário de Goiás preparou a série especialmente para abordar as implicações do consumo de agrotóxicos em Goiás e no Brasil.

Para a produção da série, foram consultados cientistas, pesquisadores de campo, produtores rurais e órgãos públicos, além de levado em conta o conteúdo de dezenas de publicações a respeito. As reportagens serão publicas sempre às segundas e quintas-feiras.


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