15 de novembro de 2024
Lênia Soares

Política parida

“Estas pessoas que esbanjam arrogância, cospem na cara da sociedade suas posições elevadas na hierarquia da política humana, uma política que de povo não entende nada, desfrutam certo tempo de suas riquezas, cerimônias, mas acabam todos na ‘papuda’. Se não na de grades e muros altos, que nos protegem destes maus-caráteres, na do esquecimento, maior condenação de quem não fez nada digno para ser lembrado”, analisa Mário Antônio Tibério, com olhos marejados e cheios de 92 anos de experiência. O que ele faz? Espera, sozinho, a morte chegar para o “afago de sua agonia”, como descreve. Em um quarto com pouco mais de seis metros quadrados, de um abrigo para idosos na cidade de Itaberaí, 100 quilômetros de Goiânia, seu Marinho me deu hoje, 27, a oportunidade de conhecer um pedacinho de Política.

Hoje… bem, hoje é domingo, e não um domingo qualquer, o último domingo de maio, que não é um mês qualquer, é o mês das noivas, das flores, da menina que acabou de descobrir que a fugidinha do carnaval resultou em gravidez, enfim, é Maio. Amanheci em uma cidade do interior, onde o dia parece surgir mais radiante, o sol traz alguma coisa de serenidade e a vida me trouxe uma grata surpresa. Na verdade, a vida me levou a uma grata surpresa, me levou ao senhor Marinho, um cientista político prático. Leia-se, apreendeu com a vida. Para ser breve, vou ousar resumir seus 92 anos, ao menos a parte que me contou, pois não posso também deixar de compartilhar este presente que será sempre lembrado por mim.

Mário Antônio Tibério nasceu no interior de Minas Gerais, o pai, assim como o avô, era político, “dos bem corruptos”, como define, Marinho preferiu outro caminho, não era político, mas pegou cedo a trilha da malandragem e seguiu. Ele era dos “malandros legítimos”, daqueles que viviam a cantar, beber e amar. E como amava. Amava todas as mulheres possíveis, a intensidade do amor era proporcional à beleza da mulher. “Bom de verso, bom de prosa e bom de cama. Fazia todas elas felizes”, se gaba seu Marinho.

Nunca se casou, não podia preterir várias mulheres em benefício de uma só. Era questão de generosidade. Não teve filhos, tinha apenas um irmão, que morreu jovem, antes dos seus pais, que morreram logo em seguida. “O câncer levou papai e pouco depois a tristeza levou mamãe”, recorda seu Marinho a mais linda história de amor que conhece, como se fosse ontem, com voz rouca, arrastada e com uma lucidez encantadora.

Estudou pouco, na escola, pois na vida não perdia a oportunidade de desvendar cada segredo. “Sempre gostei de ler. Lia o dia, a noite, as mulheres, mas lia também muitos poemas, eles me ajudavam com as mulheres”, confessou. Marinho era bom com os discursos, gostava de sugerir palavras a serem narradas pelo pai, em suas peregrinações políticas pela província. Um marqueteiro. “Certa vez escrevi uma carta. Era uma carta para Hitler, para que ele pudesse justificar seu suicídio com poesia”, lembra.

“Sinto orgulho do meu pai, mas não do político. Descobri que a política era o lugar onde ele depositava seus vícios morais, sua corrupção. Como acredito que todo homem é corrupto, vejo a política como o depósito pútrido da imperfeição. Ainda assim, não perco um noticiário. Quando alguma enfermeira aparece com mais humor e paciência, peço para que leia o jornal que chega aqui, mesmo que seja da semana passada. Agora, então, estou adorando ver o circo pegar fogo. Acha que não entendo? Entendo, sim, e gosto de olhar estes homens, que são chulos – na minha época eram eruditos -, zombarem uns dos outros, e todos, da sociedade. Gosto de vê-los com medo na cara, com as mãos trêmulas como as minhas, mas de pavor, gosto de vê-los, uns interrogando aos outros”, fala.

Olha só, o caso Cachoeira é assunto comentado no asilo de Itaberaí. Debilitados, os senhores riem e discutem, com a sabedoria de quem já não tateia no escuro. “Na minha época, filha, política era pra gente mais sabida, não pra bicheiro. Quanta ousadia quererem cuspir na minha cara, estes, que são comandados pelos jogos de azar, mas não devem conhecer uma combinação de poker. Pareço, mas não sou bobo, não. Se tivesse dinheiro e um pouquinho de forças nas pernas, iria a Brasília. Faria uma visita ao que se acha o sabichão. Queria dizer a ele que, na vida, esperto mesmo é quem sabe reconhecer outro esperto. Esse não faz negócio com qualquer um, não confia em quem já foi chamado de moleque e não é preso, não. Laranja bonita na beira da estrada, Zé, ou tá bichada, ou tem marimbondo no pé”, conclui cantando.

Obrigada, senhor Marinho. Em poucas horas pude conhecer, viver, falar, beber, cheirar, tragar, tocar Política. Sua existência é digna da lembrança, da memória. Este senhor do Lar Auta de Sousa deu à luz. Ganhei um dia! Ganhei o último domingo de maio!


Leia mais sobre: Lênia Soares