Ônibus de linha. Lotado. Destino: interior. Os bancos todos ocupados, nenhum lugarzinho a mais. Mas sempre há os atrasados, que chegam depois da hora marcada e inventam botar banca. Por causa disso, confusão armada.
– Cheguei atrasado por que não dei conta de chegar a tempo, ora! – justificou o passageiro, ofegante, com a língua de fora.
– Infelizmente não posso deixar você entrar, a polícia pode me barrar lá na frente! – respondeu o condutor.
– Ah isso não, por quê? – questionou o passageiro, em tom intrigante.
– Por que o ônibus tá cheio, não tá vendo! – interferiu o cobrador, com certa rispidez, já com o sangue fervendo pelo estresse do trabalho, na tentativa de pôr fim àquela latomia que já começava a provocar o atraso da partida da condução.
– Mas eu tenho que ir embora é agora, não posso ficar aqui, tenho compromisso lá na minha cidade! – ponderou o passageiro.
– O motorista já disse que não pode levar, você é surdo? – respondeu o cobrador, chamando para si a responsabilidade da conversa e já fechando questão, para pôr fim ao assunto.
– Pois se não me deixar entrar nessa geringonça por bem eu vou ser obrigado a entrar por mal, mas que eu vou viajar, eu vou, uai!
– O motorista já falou que não pode, então não pode, ouviu não? – rebateu mais uma vez o cobrador.
– O mocinho tá me irritando e me obrigando a dar um murro por cima do seu zóio! – ameaçou o passageiro!
O pior que não deu tempo da turma do “deixa disso” apaziguar a contenda, eis que os ânimos se tornaram excessivamente exaltados.
– Então dá se ocê for homem! – apelou feio o cobrador, oferecendo-se e posicionando-se para o início da batalha corporal.
E o passageiro mal permitiu que o cobrador do ônibus fechasse a boca e lhe arrumou a mão na lata que ele despregou do banco e saiu catando mamona. E continuou distribuindo valentia para todos os cantos: “Quem achou ruim pode vim pra apanhar também!”…
Mas decerto ninguém achou ruim, pois não apareceu uma só alma para fazer companhia ao cobrador. O coitado teve de apanhar sozinho. Só o motorista que, morrendo de medo, arranjou um jeitinho de chamar a polícia sem que ninguém percebesse.
Ao chegar, a autoridade policial tratou de assumir o controle da situação. E foi logo dando ordens:
– Todo mundo com os documentos na mão, porque vamos revistar de um por um, e quem estiver sem documento e armado vai preso – sentenciou o cabo que chefiava a diligência.
Para surpresa geral, ninguém portava arma alguma. Todos em silêncio. Só o policial falava, quer dizer: ordenava e ameaçava. Somente na cozinha do ônibus houve quebra da monotonia. De lá saiu a indagação:
– O que é mesmo que o senhor quer ver?
– Os documentos, seu besta, não ouviu não? – repreendeu o revistador, com voz forte e amedrontadora.
O distinto senhor que fez a pergunta e que foi sorteado para ser o primeiro a ser revistado deu uma olhadela de baixo para cima, mansamente, até fitar os olhos no policial, sem mudar a pose. Calmamente, pendeu o corpo para a direita e retirou do bolso traseiro esquerdo a carteira e de dentro dela a identidade.
O homem da lei, já meio sem paciência diante daquilo que entendeu ser uma baita enrolação e até mesmo uma afronta, pegou o documento, analisou de um lado e de outro, encarou o passageiro umas duas ou três vezes seguidas, comparando-lhe a fisionomia com a foto da carteira de identidade. É que no tempo da fotografia a calvície estava só no início e não havia ainda lastrado tanto pela cabeça afora. Daí a sua grande dúvida.
– Não parece com você não! – concluiu a autoridade.
– Mas nem um pouquinho? – reagiu o revistado, muito brincalhão e sem demonstrar medo, deixando transparecer certa ironia em suas palavras.
O revistador não gostou nem um pouco do que viu e ouviu. E tomou as providências que achou cabíveis para o momento:
– O indivíduo tá é com gozação com a minha cara!…
– Né não, o senhor tá entendendo mal.
– O indivíduo sabe que tá preso?
– Não, não sei. Preso?
– Pois tá: “Teje preso!”
Mas o homem não se mostrou intimidado. Do jeito que estava, ficou. E ainda criou caso:
– E a acusação, qual é?
– Desacato à autoridade. E não tem mais conversa. Levanta daí, seu engraçadinho, baixinho e feio, gordinho e careca, duma figa! E acompanha meu colega policial até a delegacia, pra você aprender a respeitar a autoridade no exercício constitucional de seu trabalho.
O distinto senhor espichou o pescoço, para enxergar melhor o tal “colega” que o levaria preso. Apoiou de novo o corpo na poltrona e fez cara de riso. Aí o policial virou uma fera.
– Ô pouca-telha, tá ainda gozando com a nossa cara, né! Lá na delegacia a gente acerta! Mostrar procê com quantos paus se faz uma canoa!
– Pera aí, o amigo tá enganado – justificou o preso, percebendo que a coisa estava ficando feia mesmo para o seu lado.
– Amigo uma pinoia! Quem falou que sou seu amigo, cara!
– Seu policial, não leva a mal não. Tou tentando explicar. É que pra eu sair daqui só se for carregado. E seu colega não tem musculatura pra me carregar não, é muito franzino. Quando muito ele vai dar conta de levar minhas muletas, que estão guardadas aqui debaixo do banco.
O Cabo aproximou-se, checou minuciosamente os seus argumentos de defesa e sapecou:
– Ô peste, por que diabo não falou logo que era aleijado? Que adianta levar um homem desses pra cadeia, só pra dar mais trabalho!…
– Mas Vossa Excelência não me perguntou!
– Vossa Excelência é a mãe!…
– Que sujeitinho mais invocado e topetudo, sô! – interferiu o policial que deveria conduzir o preso até a delegacia, já branco de raiva.
Porém nessa hora o cabo pediu-lhe calma. Pensou um pouco e concluiu que não valia a pena persistir com aquele entrevero sem futuro. E voltou atrás na ordem do “Teje preso!”.
– Por essa vez passa, mas não caia noutra não, viu? Vê se respeita a autoridade em pleno exercício constitucional de suas funções, entendeu!
– Mal pergunte, cadê o homem que bateu no cobrador, tá preso? – indagou o distinto senhor, exibindo garbosamente seus lindos dentes brancos.
– Cadê o homem, policial? – endereçou o Cabo a mesma pergunta ao subalterno.
– Xiii!… Não há de crer que o indivíduo escapuliu!… O sujeito foi embora!…
– Uai, e eu, como vou ficar depois de tomar um murro na testa? – quis saber o cobrador.
– Vai ficar com um galo na testa, pra aprender a tratar bem os seus passageiros e não arranjar mais encrenca! – desabafou o chefe da diligência, antes de deixar o local com as mãos vazias.
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Nota: Nossa homenagem aos bons e bem intencionados policiais que procuram cumprir, com esmero e responsabilidade, a missão de promover a ordem pública e a segurança da sociedade e da família.