Elson Gonçalves de Oliveira
Deita tarde. Dificilmente antes da meia-noite. Costume antigo. Diz-se que o hábito é que faz o monge. Ele se fez gente assim. Desde menino ninguém jamais o perturbou para deitar com as galinhas e levantar com o cantar dos galos. Por isso, não tem vontade de deixar a cama muito cedo. A tese que sempre defendeu foi a seguinte: “Pra que levantar de madrugada se não sou tirador de leite nem vou arrancar feijão na roça?”
O trabalho se estende até dezoito horas. Depois disso, a volta pra casa, o banho, o jantar, o telejornal, às vezes a novela, tem dia que um futebolzinho na televisão. Rotina. De vez em quando, para não dizer quase todos os dias, um cochilo no sofá cai bem. Um namorico com a patroa também faz parte, porque ninguém é de ferro.
Noite dessas, no entanto, em que os afazeres entraram noite adentro, e por isso teve de dormir mais tarde do que o habitual, ele acordou em sobressalto. Barulho, muito barulho. Logo naquela noite em que desfalecia exausto. Pressentimentos os mais horríveis e desordenados. Será que a casa está caindo? Será ladrão arrombando a porta? Ou é a terceira guerra mundial que está sendo deflagrada?
Nada daquilo. Era sua mulher matando uma lagartixa, quer dizer: tentando matá-la. A valente guerreira tinha nas mãos um rodo do cabo comprido, com o qual batia desesperadamente e de forma desordenada na parede, na porta e na janela de madeira da casa.
Por essa razão, ele acordou assustado. Mas quem não acordaria? Se pelo menos nas primeiras pancadas a mulher tivesse conseguido acertar a malfazeja e insignificante sáuria perseguida, certamente não teria acordado em pânico. Mas o diabo é que ela não acertava o alvo: batia aqui, batia acolá e nada. E o pior é que concentrava toda a força que tinha em cada açoite. Cada um mais forte do que o outro.
– Vai ser ruim de pontaria lá no caixa-pregos! – provocou o marido, já assistindo de perto aquele pandemônio.
– Então por que você não vem me ajudar, em vez de ficar pondo defeito!?… – desafiou a mulher, mostrando o seu desagrado com a brincadeira.
– Olhe o tamanho do buraco que você fez na parede! Deixa a coitada, ela é inofensiva! Desde quando lagartixa faz mal a alguém?
– Deixo não. Tenho horror a lagartixa. Bicho feio!… Ó como ela tá olhando pra mim!… Lagartixa e mandruvá, eco! Tenho nojo!
Não era toda lagartixa que ela tinha por inimiga. Só as branquinhas, que correm nas paredes e nos forros das casas. Diz-se que elas passeiam sobre as vasilhas, sobre as roupas e sobre os trens de comer. Daí a razão pela qual elas (as mulheres e as lagartixas) não combinam de jeito nenhum. E por castigo, deu de aparecer tanta lagartixa lá em sua casa ultimamente! Parece até um capricho!…
Ele resolveu topar o desafio. Já que sua mulher não dava conta de matar a indesejável, corajosamente decidiu assumir a frente e a responsabilidade da batalha. Mesmo por uma questão de economia, pois deixasse como estava – pancadas e mais pancadas, uma atrás da outra e sem direção certa, acertando na parede e nos móveis da casa, desordenadamente –, e o prejuízo seria enorme.
Tomou nas mãos a arma (um rodo) e foi devagarzinho lá no canto da parede e puxou a lagartixa com toda a força, vindo a bichinha bater com a pança no chão. Deu-lhe uma cacetada só, que acertou bem na nuca. O animalzinho tremeu e estrebuchou.
Mas aí que foi pior: quando no seu momento derradeiro, antes de exalar o último suspiro – o suspiro da morte –, a coitadinha ergueu a cabeça e olhou bem dentro dos seus olhos, como que a suplicar compaixão e clemência. Depois expirou. Já comovido, pegou a extinta com jeito e delicadeza e jogou lá fora, lá longe.
Na trajetória do quarto, local do “crime”, até o terreiro da cozinha, ele foi refletindo sobre o olhar de piedade e súplica da lagartixa. O coração doeu. Sentiu remorso. O olhar da coitada da bichinha, que só procurava algum inseto para saciar a sua fome, jamais saiu da sua cabeça. Por isso, fez um juramento de nunca mais matar lagartixa.
Nas suas reflexões que se seguiram ao ato de violência, que redundou na morte do pequeno e indefeso animal, aflorou à sua mente a certeza de que todo ser vivente tem direito à vida. Todos são filhos de Deus. Afinal, de onde veio ao ser humano o direito de arvorar-se em exterminador dos mais fracos, mesmo que esses mais fragilizados sejam os animais e que esses animais sejam as lagartixas?
Depois disso, já acordou várias vezes à noite com aquele mesmo pampeiro: cacetada aqui, paulada acolá… Porém, sabe do que se trata: a casa não está caindo, nem é ladrão arrombando a porta, nem tampouco o estouro da terceira guerra mundial. São elas: sua mulher e a lagartixa, em constante confronto. E vira na cama e retoma o sono.
Elas que se entendam!… Os buracos na parede? Ah! Depois se dá um jeito. Melhor mesmo é pegar no sono outra vez.