Antes da Constituição Federal de 1988, os partidos políticos mais conhecidos eram o Partido Social Democrático (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN). As disputas nas eleições eram acirradas entre os correligionários e os simpatizantes de ambos os lados. Havia momentos em que parecia que uma guerra civil ia ser deflagrada. Brigas corriqueiras aconteciam a todo instante. Insinuações, gozações, frases irônicas e de efeito, apelidos exóticos e engraçados. Tudo em nome do convencimento do eleitor.
No final, os entreveros normalmente eram contornados, pois o que realmente interessava era o voto. Havia exceções, porém. Às vezes as desavenças eram tamanhas que se estendiam até o comprometimento das relações familiares. Famílias inteiras com relacionamentos conflitosos. Passavam anos seguidos alimentando picuinhas e fomentando o ódio.
Cada partido tinha o seu comitê político, bastante movimentado pelos candidatos, cabos eleitorais e eleitores. Quem frequentava o comitê da UDN não era bem visto no do PSD, e vice-versa. As chamadas “Ala-moças”, em número expressivo usavam alto-falantes de grande potência, cantando versinhos enaltecendo os seus candidatos e explorando os defeitos dos candidatos adversários. Se o desafeto não tinha defeito conhecido, inventavam algum ou alguns. Repertório não faltava. E o outro lado respondia à altura, usando o mesmo expediente.
Esses ataques e contra-ataques eram tão calorosos que a população ficava na expectativa de um enfrentamento corporal, o que raramente acontecia. A turma do deixa-disso agia a tempo. Depois disso, os aparelhos de som eram desligados. E as “Ala-moças” de ambos os lados iam-se encontrar no vaivém da Praça da sua cidade, a fim de se abraçarem, rirem juntas e reatarem a amizade.
Certa vez o chefe político udenista pressentiu que seu candidato perderia a eleição. E ele não queria perder, estava enjoado de apanhar. Naquele tempo não se falava em pesquisa de intenção de votos, contudo era visível o fraco desempenho do moço. Mesmo contando com o apoio das bases, não decolava. Toda mutreta para ganhar uma eleição já tinha sido usada. E nada. O comitê da UDN vivia cheio de gente, mas os cochichos eram de tapeação, não de adesão à causa partidária. O que o povo queria mesmo era comer as almôndegas com mandioca, preparadas nas tachas gigantescas e colocadas à disposição do eleitor. Com a barriga cheia, votaria no PSD, deixando os udenistas mamando nos dedos.
O cacique da política era esperto. Enxergava muitas léguas à frente dos companheiros. Já tinha sido escorraçado diversas vezes pelos ferrenhos adversários. Tinha calo no lombo. Deixasse como estava e a derrota seria humilhante. Haveria de ter um jeito de reverter a situação. E teve.
Plano fulminante foi colocado em prática pelo estrategista da UDN:
— Já recebeu o dinheiro da eleição, fulano? – indagava a um e a outros eleitores do partido contrário.
— Que dinheiro?
— Uai, o dinheiro que o Pedro Ludovico mandou distribuir para os eleitores do PSD!
— Mas lá no comitê ninguém avisou nada disso! Com quem que tá a bufunfa?
— Pois é, tá escondida lá na casa do candidato do PSD. Diz que é pra ir distribuindo aos poucos, pra economizar. Pode ir lá que o seu deve estar reservado. A menos que…
— A menos que o quê?
— A menos que ele queira guardar aquela grana toda só pra ele!… E olha que é um saco de dinheiro bem grande, amarrado pela boca!…
Pronto. Confusão armada. Cada um dos eleitores que ficava sabendo ia até o candidato reivindicar a sua parte na bolada, na condição de fiel eleitor do PSD. Mas nada recebia, a não ser alguns maus-tratos, vindos justamente de quem não podia vir, isto é, do candidato, que achava um despropósito o sujeito que se dizia companheiro ter a petulância de pedir dinheiro em troca do voto. E cada um que voltava de lá com as mãos abanando era alfinetado pelo udenista: “Não falei que esse partido de vocês não é de confiança! O pessoal de lá só quer é encher os bolsos! Vem pra cá, aqui só tem amigos!”
Diante de tal manobra, bem armada e bem executada, o candidato udenista terminou virando o jogo e ganhando as eleições com folga, para prefeito.
Outra ocasião, nova disputa política…
A festa religiosa transcorria dentro do previsto. Muita gente reunida. Véspera da eleição. Por esse motivo, a animação se fazia ainda maior. Grande parte do eleitorado do município estava presente.
O circo anunciava sua estreia logo na quinta-feira da festa. O Cabaré da Efigênia chegou com uma semana de antecedência, para a alegria dos homens mais sem-vergonha, que não eram poucos.
O padre só chegava ao sábado à tarde, quando eram iniciadas as celebrações religiosas propriamente ditas. Ele tolerava o circo, achava que diversão sadia era bom para o povo. Mas repudiava a presença do cabaré e das putas. Dessa vez, no entanto, ele não pôde fazer nada para correr com elas da festa, como fizera em outras oportunidades, vez que montaram suas tendas em terreno cedido por um fazendeiro que não gostava de padres. E ficava fora do perímetro do terreno da igreja, embora ali bem pertinho.
O candidato udenista chegou primeiro e aproveitou o sábado da festa como pôde, para seu proselitismo político junto ao eleitor. O tempo todo rodeado de gente nas suas andanças, de casa em casa, pela diminuta cidade. E o povo do PSD morrendo de ciúmes e de inveja. Os mais afoitos indagavam constantemente: “E o nosso candidato, hein! Cadê o merda, pra vim pedir voto também? Tem que dar as caras, uai!”
Contente da vida e contabilizando os votos prometidos – e efetivamente comprovados, na sua opinião –, o candidato quase eleito da UDN deixou o arraial acompanhado de seus cabos eleitorais, ainda com o sol de fora. Nem quis esperar a missa das oito. Ali eram “favas contadas”, não carecia preocupar. Segundo palavras saídas de sua boca ao embarcar, sua eleição no temido arraial era “inhambu na capanga!”.
Justamente nessa hora começou a execução da ideia sinistra do PSD. Alguém desconhecido daquela população desembarcou direto no cabaré e foi logo dizendo o que queria:
— Vim a mando do meu candidato, isto é, do nosso candidato – disse o estranho.
— Mal pergunte, qual é o seu candidato, isto é, o nosso candidato: o do PSD ou o da UDN? – indagou educadamente Efigênia.
— Claro que é o da UDN!
— De que se trata?
— Vim arrematar a noitada deste sábado pro cabaré inteirinho ficar por conta dos nossos eleitores. Só os da UDN.
— Não acredito! O cabaré inteirinho?
— O cabaré inteirinho: sanfoneiro, pagode, as putas, até o sol raiar.
— Isso pode custar um bom dinheiro, o doutor candidato tá disposto a enfiar a mão no bolso?
— Pode falar quanto é que vai custar a travessura!…
No final da conversa, acabaram combinando. Ajustaram o preço e as condições do serviço. O preço nunca foi revelado a ninguém, Efigênia soube guardar segredo. Mas uma das condições não tinha como esconder: O eleitor podia se fartar como quisesse, porém tinha de jurar de pés juntos que votaria no candidato patrocinador da festa.
Fato é que notícias assim não correm: voam. Imediatamente, o povo tomou conhecimento do acordo celebrado entre o emissário da UDN e a dona do puteiro. Formou-se o alvoroço na cidadezinha. Os cochichos subiram a rua e ganharam a praça, invadindo as casas de família e até a igreja. Moitinhas de gente por todo canto comentando o fato. Os rapazes solteiros desciam em fila a fim de conferir a veracidade da notícia. As damas da sociedade xingavam até a última geração do candidato da UDN, que patrocinava o furdunço. Tiravam satisfações com todos os udenistas que encontravam pela frente. O padre, então, dedicou o sermão da missa jogando maledicências no candidato que comprou a noite do puteiro, para deleite de seus eleitores, a fim de ganhar o voto. Chegou ao ponto de praguejar: “Quem puser os pés naquela casa de pecado vai ser excomungado!”
Daí em diante, o disco virou. O PSD, que estava no fundo do poço, trocou de lado com o outro partido dentro de poucas horas. A partir de então, quem começou a padecer com o desprezo e as ironias dos eleitores foi o pessoal da UDN, que não sabia direito o que estava acontecendo. Seus correligionários pareciam assustados e sem argumentos para explicar o ocorrido. O candidato, que era quem deveria dar as explicações solicitadas pela população, já tinha ido embora fazia tempo, para pedir votos em outra localidade. Não havia telefone naquela época. Veículos, raríssimos, vindos de fora. Estradas, muito precárias. Isso dificultava e impedia uma comunicação mais urgente.
No outro dia, assim que tomou conhecimento da tramoia, o candidato udenista retornou às pressas para desmentir tudo. Entretanto, era tarde demais. O estrago era muito grande. O mal já estava feito e não tinha mais como remediar. Quanto mais tentava desmentir, pior ficava.
Questionada e responsabilizada por aquela situação catastrófica, Efigênia só sabia explicar que fora contratada por um estranho que dizia estar a mando do candidato udenista. Sua principal defesa era a sacola de dinheiro que ela exibia. Quanto ao mais, não tinha nada a ver com aquilo, muito menos com eleição. O estranho, que serviu de laranja na celebração do negócio, nunca deu as caras.
O certo é que, enquanto o candidato acusado de ter comprado o puteiro de porteiras fechadas por uma noite reagia, esbravejava, jogava a culpa no adversário – sem prova, diga-se de passagem –, o estrago de sua candidatura ia ficando cada vez maior. Principalmente quando seu rival, o candidato do PSD, chegou triunfante ao arraial, apertando a mão de todo o mundo e dando palmadas nas costas dos eleitores. E ainda por cima convidando a todos para o espetáculo do circo, mais tarde. Tudo de graça, patrocinado por ele.
A notícia ganhou o município de ponta a ponta. Foi inevitável. Apuradas as urnas, o PSD deu de capote. A UDN nem raspou a trave daquela vez.