REINALDO JOSÉ LOPES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A simbiose entre o regime fascista de Benito Mussolini (1883-1945) e o papado foi crucial para que o ditador consolidasse seu domínio da Itália a partir dos anos 1920, afirma o historiador americano David Kertzer, da Universidade Brown.
O livro de Kertzer sobre o tema, que acaba de chegar ao Brasil, usa uma massa impressionante de documentos para mostrar que a Igreja Católica aceitou até mesmo as leis antissemitas propostas por Mussolini quando ele se aproximou do nazismo, ainda que protestasse contra detalhes da legislação.
“O Papa e Mussolini”, obra que venceu o Prêmio Pulitzer de Biografia em 2015, narra as vidas paralelas de Achille Ratti, o papa Pio 11 (1857-1939), e do líder fascista, além de traçar perfis dos principais assessores de ambos, muitos dos quais ajudaram a costurar uma espécie de aliança tácita entre o Vaticano e o fascismo no período entre as duas guerras mundiais.
Em entrevista à reportagem, Kertzer contou que a decisão de escrever o livro veio em 2002, quando o papa de então, João Paulo 2º, anunciou que permitiria a consulta dos arquivos da Santa Sé que datavam do pontificado de Pio 11. “Entre esse anúncio e a abertura dos arquivos, quatro anos se passaram. Enquanto esperava, consultei os documentos do governo italiano sobre o período e também estudei os arquivos centrais dos jesuítas, os quais foram muito importantes para as relações entre o Vaticano e o fascismo. Meu livro, portanto, é um dos primeiros a analisar esse período”, explica.
CONTRASTE
À primeira vista, seria difícil imaginar uma aliança entre sujeitos mais diferentes do que Mussolini e Achille Ratti. Nascido numa família de classe média baixa profundamente anticlerical, o futuro duce (“líder”, como Mussolini passaria a ser chamado) começou sua carreira política como um agitador esquerdista radical. Dizia desprezar o cristianismo e só foi batizado, junto com a mulher e os filhos, após se tornar primeiro-ministro.
O futuro papa, por outro lado, tivera uma infância confortável e devota. Após receber a ordenação sacerdotal, tornou-se especialista em paleografia (o estudo da “letra” dos manuscritos antigos), além de atuar como enviado do papa Bento 15 na Polônia.
Coincidentemente, ambos assumiram seus cargos máximos em 1922. Embora usasse capangas para intimidar ativistas do Partido Popular e da Ação Católica, principais órgãos de ativismo político do catolicismo, Mussolini passou a oferecer à igreja a perspectiva de uma aliança.
Promulgou leis que puniam insultos a sacerdotes e à fé católica, instituiu o ensino religioso obrigatório nas escolas primárias (mais tarde, também nas secundárias) e fez doações generosas para o reparo de igrejas.
Por meio dessas medidas, argumenta Kertzer, o fascista conseguiu atrair o interesse de Pio 11 justamente no ponto que mais irritava o papado desde o fim do século 18: a crescente separação entre igreja e Estado na Itália.
“Isso começou com a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas, quando dois papas, Pio 6º e Pio 7º, chegaram a ser aprisionados por Napoleão”, explica o historiador. Nessa época, os pontífices eram os soberanos de um pedaço considerável da região central da Itália, incluindo a própria Roma, enquanto o resto da península estava dividido em diversos Estados independentes.
Com a unificação italiana e a transformação de Roma em capital do novo reino, em 1871, os papas viraram “prisioneiros do Vaticano”, sem Estado independente próprio e em briga constante com o governo secular da Itália.
Diante dos sinais de trégua emitidos por Mussolini, Pio 11 considerou que valia a pena apoiar cautelosamente o fascismo. Além disso, o papa não era um entusiasta do parlamentarismo italiano e preferia um governo forte. “Mussolini não é nenhum Napoleão, mas só ele compreendeu o que era preciso para livrar o país da anarquia a que fora reduzido”, declarou o pontífice ao embaixador da Bélgica na Santa Sé em 1923. “Que ele reviva a Itália! São esses homens predestinados à grandeza que conseguem trazer a paz hoje ausente.”
As negociações entre os emissários do papa e os do Duce culminaram com o Tratado de Latrão, assinado em 11 de fevereiro de 1929. O tratado criou o pequeno Estado do Vaticano, nos moldes que ainda tem hoje, e estipulou uma boa compensação pela perda de propriedades da igreja na Itália durante o processo de unificação.
ENTRE BEIJOS E TAPAS
A relação entre os dois líderes passaria por altos e baixos depois disso. Mussolini não queria que as organizações fascistas enfrentassem a concorrência da Ação Católica na hora de atrair crianças e adolescentes para suas fileiras. Pio 11 bateu o pé, exigindo liberdade para o órgão. Em 1931, chegou a publicar uma encíclica em italiano, “Non Abbiamo Bisogno” (“Não Precisamos Disso”), que criticava o regime.
Conforme Mussolini foi se aproximando de Hitler ao longo dos anos 1930, o papa se mostrou cada vez mais desgostoso com o rumo tomado pelo fascismo, mas continuou se valendo de suas ligações com o regime para reprimir livros, filmes e comportamentos considerados ofensivos à igreja e para barrar o crescimento da pequena comunidade protestante da Itália.
Quando os fascistas decidiram copiar as leis nazistas sobre a “pureza da raça”, proibindo o casamento entre judeus e “italianos arianos” e tirando direitos da população judaica, Pio 11 e seus emissários só foram incisivos ao exigir que os casamentos entre católicos e judeus convertidos ao catolicismo fossem reconhecidos como válidos.
Não houve oposição clara à discriminação, embora o papa tenha ressaltado em um de seus discursos: “Espiritualmente, somos todos semitas”. Um discurso póstumo de Pio 11 com críticas mais veementes a Mussolini acabou sendo engavetado por seu secretário de Estado, Eugenio Pacelli (eleito, logo depois, papa Pio 12), após a morte de Ratti.