23 de dezembro de 2024
Opinião
Publicado em • atualizado em 18/01/2023 às 17:24

Shopping Flamboyant não tem livraria: classe média goianiense e crise literária

Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Como é possível que um empreendimento de significação histórica, e fortemente vinculado ao ambiente cultural da classe média tradicional de Goiânia – uma cidade entre as principais capitais do Brasil, em um região de significativa importância econômica para o país – estar há quase um ano sem uma livraria? Em um contexto em que o próprio prefeito sinaliza para o fechamento das bibliotecas das escolas municipais, com o falso argumento de que potencializa o desenvolvimento de sinusite (sic) em crianças, isso é muito simbólico.

O Flamboyant Shopping Center é o mais tradicional shopping da cidade de Goiânia. Isso se deve ao fato de ser o primeiro shopping inaugurado, tardiamente, no estado de Goiás, em 1981. Segundo informações da própria instituição, sua construção começou em 1976 quando a família Louza procura no exterior consultorias que realizam estudos de implementação do empreendimento a partir de análises econômicas e financeiras. Relatos de goianienses que vivenciaram esta novidade apontam a valorização que o empreendimento incutiu à capital, se tornando símbolo de progresso e da incorporação de Goiânia ao mapa das capitais mais desenvolvidas do Brasil, mesmo em uma época de alta inflação e crise no consumo. De lá pra cá, o shopping Flamboyant abriu caminho para a inauguração de outros 20 empreendimentos nesta direção.

O nome se deve ao fato de o Flamboyant ser uma das árvores mais populares da cidade naquela época. Com um cenário bem diferente do atual, suas principais avenidas, como a Avenida Araguaia e a Avenida Tocantins, eram repletas desta árvore. O shopping aos poucos se tornou, também, símbolo de desenvolvimento cultural vinculado à classe média: vale lembrar o Flamboyant in Concert, com show de MPB; e o Flamboyant Garden Festival, com iniciativas também de lazer.

É localizado em um bairro nobre da cidade, o Jardim Goiás. A área do local fazia parte de uma fazenda pertencente a Lourival Louza, pai do empreendedor que iniciou o projeto do Shopping Flamboyant. Entre as décadas de 80 e 90, atrelado a construção do shopping, o bairro passou por uma valorização e um forte crescimento vertical, trazendo investimentos internacionais, por exemplo, na área de hipermercados, como o Carrefour e a rede Walmart que se instalaram na região aumentando a especulação imobiliária.

No bairro, contrastando com as ocupações auto-construtivas (informalidades urbanas) que também se fazem presentes, estão as sedes do Ministério Público do Estado de Goiás e de outros órgãos públicos; e também da TV Serra Dourada, afiliada do SBT em Goiás; além do Estádio Serra Dourada, o maior estádio de futebol do Estado. Hoje, segundo índice do FipeZap (que analisa tendências do mercado imobiliário), tem o segundo metro quadrado mais caro da cidade. Uma rede hoteleira de luxo também se consolidou na região, ao redor do shopping, recebendo visitantes de diversos outros estados, e mesmo do mundo, que ali, podem frequentá-lo. Acrescenta-se que o estacionamento do shopping é o mais caro entre os shoppings da cidade.

Isso, consequentemente, indica o público majoritário que o empreendimento atende. Rodeado de apartamentos de luxo, o shopping passou por 6 etapas de expansão entre 1996 e 2014. Este crescimento vertiginoso não poderia acontecer se não fosse um empreendimento lucrativo, frequentado por uma classe média alta tradicional da cidade, contribuindo para a imagem, amplamente acreditada na opinião popular, de ser um shopping de elite.

As elites – as reais –, entretanto, tem dinheiro suficiente para comprar nos shoppings de Miami quantas vezes forem necessárias ao ano. Ou, alocadas que estão nos condomínios fechados de luxo nas margens da cidade, próximo a região, tem a seu dispor funcionários que compram o que precisam para seu padrão de alto consumo, não precisando frequentar shoppings e andar no meio do “povão” (sim, classe média, mesmo que alta, para estes, é “povão” – risos). O Flamboyant Shopping Center, ao contrário de ser um shopping de elite, é um shopping de classe média.

Já nos alerta o sociólogo Jessé Souza (2018), que essa classe média, detentora que é do conhecimento acreditado legítimo e prestigioso, compõe uma classe de privilegiados: juízes, promotores e outros funcionários públicos; professores universitários, jornalistas de muito sucesso, empresários, altos funcionários do mercado privado. Ela, porém, não é burguesia. Ocupa postos muito bem remunerados, deixando progressivamente de receber salários para receber participação nos lucros. Possui uma “ilusão objetiva” de ser ela mesmo a elite, o que dificulta sua auto-percepção de seu verdadeiro lugar na sociedade.

Segundo o sociólogo, a classe média tem no acesso ao capital cultural uma plataforma de distinção de uma outra classe, a classe trabalhadora, majoritariamente negra e sem acesso ao consumo. Mais próxima “territorialmente” das classes baixas e trabalhadoras, a quem se distinguem, do que das elites, têm medo da precarização e da proletarização. Porém, é ressentida por não ter dinheiro como a elite – que, em Goiás, está representada majoritariamente por produtores rurais e empresários vinculados ao agronegócio – e potencializa seu valor próprio em bom gosto: bebe bons vinhos, frequenta bons cafés, e, principalmente, lê bons livros. Não basta ter dinheiro, tem que saber como gastá-lo!

Por ter mais tempo livre, e por estar inserida em um habitus que reforça o monopólio do capital cultural (a classe média tem dinheiro para comprar o tempo livre dos filhos, incutindo neles interesse pela leitura, viagens, línguas), dados levantadas nos últimos anos mostram que é essa classe a que consome mais livros. Mas será que em Goiânia continua assim?

Em tempos recentes, havia no Flamboyant – o shopping por excelência da classe média, como vimos – ao menos duas livrarias importantes: a FNAC, uma rede de origem francesa, e a Saraiva, rede brasileira fundada em São Paulo, em 1914. Com uma grande estrutura, a livraria Fnac do shopping Flamboyant comportava eventos dos mais diversos tipos, inclusive musicais, em seu interior. Deixou o país em 2018 fechando sua última loja física: a de Goiânia. Fechou com a promessa de abertura, em seu lugar, de uma loja da própria Livraria Cultura, que controlava as atividades da FNAC no Brasil desde 2017, o que nunca ocorreu (a livraria Cultura, desde 2018, quando do encerramento da Fnac, estava em processo de recuperação judicial, com dívida que chegava a até R$ 285 milhões).

Alguns anos mais tarde, em dezembro de 2021, foi a vez da Livraria Saraiva encerrar suas atividades na loja do Flamboyant Shopping Center. Essa decisão fez parte do processo de recuperação judicial que a rede possuía desde 2018, com dívidas chegando a R$295,5 milhões já em janeiro de 2021, segundo a imprensa nacional.

Vinda de um passado glorioso de crescimento exponencial, a rede chegou à segunda década do século XXI em retração. O lucro, segundo dados da própria empresa, caiu de R$ 78 milhões em 2012 para R$ 13 milhões em 2013, e R$ 5,7 milhões em 2014. Situação agravada pela crise da covid-19, em 2020 a Saraiva demitiu funcionários, e começou um processo de encerramento de 36 lojas das 73 que existiam em todo o Brasil.

Tentando evitar que se declarasse falência, a rede optou por fechar lojas menos lucrativas e concentrar suas atividades em unidades que estivessem com maior capacidade de lucros. Enquanto a unidade do Shopping Flamboyant era fechada, as atividades da unidade do Passeio das Águas Shopping, na região Norte de Goiânia, neste sentido, foram mantidas, e a loja está em pleno funcionamento até os dias de hoje.

Hoje, você não pode comprar um livro sequer no shopping Flamboyant. De qualquer tipo que seja. O argumento de que as plataformas virtuais, como a Amazon, ou mesmo os livros digitais em formato Kindle, tem ocupado o espaço das livrarias e dos livros físicos, democratizando o acesso ao livro fornecendo um produto mais barato, pode ser levantado. Mas ele, sozinho, não é suficiente. Livros e bibliotecas são patrimônios, individuais ou da humanidade.

Qualquer cidade que se preze, ainda mais uma capital, em termos culturais, terá uma livraria ou mesmo uma biblioteca. Nos encontramos em uma situação em que podemos ter aulas virtuais, por isso fecharemos as escolas e universidades, privadas ou públicas? Podemos, ainda, trabalhar em home-office, por isso fecharemos todos os escritórios? Os sebos e livrarias populares da rua 4 no centro de Goiânia, por exemplo, se mantêm funcionando, apesar das dificuldades e das novas faces do mercado literário. É um assunto a ser trabalhado em textos seguintes deste editorial.

Obviamente, não podemos descartar que estamos passando por uma revolução do texto eletrônico, que significa, também, uma revolução da leitura. Chartier, historiador francês, nos mostrou que ler em tela não é ler em livro. A leitura do livro impresso proporciona uma experiência diferente da leitura em formato digital, que é uma experiência de leitura de novo tipo. Entretanto, uma experiência não exclui a existência da outra. A classe média, teoricamente, teria acesso a este tipo de experiência com o livro físico por ter condições de comprá-lo independentemente de ser mais caro, proporcionalmente. Além disso, a própria imprensa aponta dados de que o mercado editorial tem se recuperado desde 2019.

A Internet torna possível o sonho da biblioteca de Alexandria: a constituição de uma biblioteca universal, com todo o conteúdo do mundo. Torna possível, mas não real. Depende, fundamentalmente, da vontade humana. A compreensão da revolução eletrônica de hoje depende de sua inscrição em uma história de longa duração da leitura e do livro, não ignorando os aspectos de sua materialidade. Esta mudança de perspectiva nos permite uma medida das possibilidades inéditas abertas pela digitalização dos livros e suas mudanças em transmissão e recepção.

E o fato de uma livraria ser fechada em um shopping de classe média alta, no Jardim Goiás, por falta de lucros, e ser mantida em um shopping rodeado de setores de periferia, em sua maioria resultado de auto-construções e informalidade urbana (ele se localiza a poucos metros do Ribeirão Caveiras, entre os setores Urias Magalhães, Balneário Meia Ponte, Setor Perim, dentre outros), e com estacionamento até o ano passado gratuito (hoje é cobrado o valor de R$ 5,00 por um período de 12h, que no shopping Flamboyant custaria em torno de R$ 60,00), pode ser muito simbólico.

Podemos nos perguntar: as classes populares têm consumido mais livros do que as classes médias em Goiânia? A cidade tem passado por uma crise literária? Essa crise literária é uma das vertentes de uma crise cultural mais ampla? Quais as especificidades locais desta crise de caráter global? São perguntas que exploraremos em textos seguintes para o Jornal Diário de Goiás.


















Cristian de Paula Jr é professor de história e mestre e doutorando em História da Política pela UFG

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