Com a proximidade dos 60 anos do golpe de 1964, que ocorre no domingo (31), a Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) lembrou a data esta semana destacando os impactos iniciais da repressão de uma ditadura militar que durou 21 anos e interferiu nos poderes e nas liberdades do Brasil, sob a influência dos Estados Unidos.
Os atos transcorridos em Goiás, tido como prioritário por causa da presença da Capital Federal, são vistos como de grande relevância para exemplificar a estratégia dos grupos militares na conquista da hegemonia no Estado.
Texto jornalístico com dados históricos e entrevistas com alguns parlamentares publicado no portal da Alego aponta como o governador Mauro Borges acabou traído ao acreditar nos militares, terminando perseguido por eles. Ironicamente oito meses depois de questionar o governo do presidente João Goulart, o taxando de comunista em apoio ao golpe, foi Mauro Borges o próximo a ser chamado dessa forma até perder o cargo.
Leia a íntegra abaixo!
Na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964, o Brasil vivenciou um golpe militar, parecido com outros que se espalhavam pela América Latina, e que daria início a uma ditadura que perduraria por 21 longos anos, até a eleição indireta para presidente da República do civil Tancredo Neves, em 1985.
Embora o golpe tenha silenciado o Congresso Nacional e outras casas legislativas, a Assembleia Legislativa de Goiás resistiu, ao menos inicialmente. A Casa não foi fechada, mas ficou paralisada, sem aprovar nenhum projeto por mais de um mês.
A paralisia só foi quebrada em 11 de maio, quando um projeto, de autoria do então governador Mauro Borges, foi votado e aprovado. A Lei Estadual nº 5128/64 alterava regras de pagamento no Judiciário, demonstrando que, mesmo sob a sombra da ditadura, a Assembleia Legislativa ainda exercia algumas funções.
O regime militar impôs censura e repressão, restringindo as atividades e a liberdade de expressão dos parlamentares e de toda a sociedade civil. A aprovação do projeto de Mauro Borges, embora represente uma brecha nas amarras impostas no período, nem de longe significava um retorno à normalidade.
Seis anos após o fim da ditadura, a professora de sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Dalva Maria Borges, defendeu, em 1991, uma dissertação intitulada “1964 em Goiás – o ovo da serpente: militares e proprietários de terras na gestação da ditadura”, sendo considerada até hoje a mais importante pesquisa sobre o golpe de 1964, em Goiás. Um resumo da dissertação consta do livro “Goiás: sociedade e Estado”, publicado pela Editora Cânone, em 2009.
Segundo a dissertação de Dalva, a cassação de Mauro Borges foi resultado de uma conspiração oposicionista articulada por uma aliança entre proprietários de terra em Goiás e oficiais de linha-dura, que disputavam o poder central com o grupo liderado por Castelo Branco.
“O golpe de 1964 configurou-se como uma solução militar para a crise de hegemonia que se instalara no Estado brasileiro desde o final dos anos 1950. O insucesso das quarteladas de 1954 e de 1961 convenceu o núcleo militar, que provocou aquelas ações da necessidade de catalisar forças civis e militares de apoio à derrubada do governo”, escreve Dalva. “Na tarefa de conquista do Estado impunha-se a necessidade de atrair outras forças sociais, ampliando a coalizão que apoiaria o golpe. Além da classe média, setores empresariais tradicionais, urbanos e rurais foram igualmente atraídos pelo núcleo golpista”, anota ela.
Os livros de história mostram que a queda de Mauro Borges foi construída, lentamente, de maio até novembro de 1964. Mauro, inclusive, foi inicialmente a favor do golpe de 1964. “O ritmo acelerado que tomam os acontecimentos impede uma articulação maior e mais efetiva, e cada governador (inclusive vários que seriam cassados pela ditadura) sai com manifesto próprio”, escreve Dalva.
Às 23h30 do dia 31 de março, Mauro Borges lança o seu manifesto. O Manifesto à Nação trouxe elementos que indicavam seu apoio ao golpe militar, ao condenar o “posicionamento assumido por João Goulart, […] quando vemos a posição inconcebível do presidente […] desprestigiando os seus mais graduados íntimos colaboradores, no caso o ex-ministro da Marinha, fugindo aos seus deveres de comandante forte e justo das Forças Armadas para agradar o grupo comunista subversivo, devemos ter fundadas razões para pôr em dúvida a sua lealdade ao regime e aos seus subordinados que, também como ele, fizeram sagrados juramentos de fidelidade à Constituição brasileira”.
Na oportunidade, Mauro atacava a possível continuidade do presidente João Goulart, assim como a instalação de um “governo comunista” no Brasil, conforme propalado: “[…] será a solução destruir o regime democrático e levantar a bandeira da República Popular do Brasil? […] afirmo que não […] precisamos de um governo com autoridade, forte […]. É preciso que não se permita ao presidente João Goulart o uso das ditas reformas para seu continuísmo […] aspiramos e lutaremos por um governo social economicamente justo, calcado em princípios cristãos. Queremos as reformas dentro da lei, queremos governo que, ao lado da iniciativa privada, socialmente justa, e com um planejamento global, dinamize todas as potencialidades de trabalho e riqueza, para que aumente a produção e distribua com equidade os seus frutos”.
Com esses argumentos, Mauro deu seu apoio ao golpe militar. E foi além. O jornal O Popular, de 11 de abril de 1964, noticiou que Mauro Borges assumiu, em Goiás, a direção das “Forças Revolucionárias”, movimento que defendia quem fosse a favor do regime militar. Isso contrariou a UDN goiana, mas Mauro tinha o apoio de Castelo Branco.
Os setores legalistas (liderados inicialmente por Castelo Branco) foram, no entanto, perdendo força para os setores de “linha dura”, o que desembocaria na cassação de Mauro Borges pela mesma ditadura que ele apoiara em um primeiro momento. Tudo foi acontecendo gradualmente. Primeiro, em maio de 1964, mandaram para Goiás o coronel Danilo Darcy de Sá Mello para comandar o 10° Batalhão de Caçadores (BC), que fez os chamados Inquéritos Policiais Militares (IPMs) para indiciamentos.
Mais de 100 integrantes que ocupavam cargos de confiança no governo Mauro Borges foram indiciados. Além disso, antes do golpe de 64, Mauro havia feito viagens à então União Soviética e à República Popular da China, sendo considerado de esquerda pelos setores mais conservadores das Forças Armadas.
Foram cassados os direitos políticos de três secretários estaduais de Goiás: o da Educação e Cultura, padre Rui Rodrigues da Silva; o do Interior e Justiça, Wilson da Paixão; e o da Administração, deputado Valteno Cunha Barbosa. Foi, então, instalado um Inquérito Policial Militar (IPM) contra o próprio governador. Coronel Danilo de Sá foi mais explícito e chamou Mauro Borges de “comunista”, como registram os jornais da época, embora Mauro fosse militar e tenha apoiado o golpe e a eleição indireta do presidente Castelo Branco.
Atendendo pedidos de Mauro Borges, o presidente então substituiu Danilo de Sá pelo general Riograndino Kruel (que era diretor-geral do Departamento de Polícia Federal), irmão de Amauri Kruel, chefe do Gabinete Militar da Presidência da República. A “fritura”, no entanto, não cessou.
Para o regime, Goiás era de grande importância estratégica por cercar o Distrito Federal. Os militares tinham também a ajuda de “civis da UDN”, rivais políticos de Mauro Borges, que queriam depor o PSD do poder em Goiás. Como parte da “fritura”, um pequeno furto de armas ocorrido em Anápolis foi considerado “a prova cabal” de que um contragolpe estava prestes a acontecer em Goiás.
Ainda respirando por aparelhos, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu um habeas corpus preventivo a Mauro Borges, impedindo sua queda. O STF ainda foi claro dizendo que Mauro deveria ser julgado pela Assembleia Legislativa de Goiás e não por um tribunal militar.
Pressionado, o presidente Castelo Branco usou de uma artimanha jurídica, decretando intervenção em Goiás. Mauro seria deposto em 26 de novembro de 1964. O interventor foi o coronel Carlos de Meira Mattos. Passados os 45 dias, o presidente Castelo Branco apontou o marechal Emílio Ribas Júnior como o seu nome para governar o Estado, em eleição indireta na Alego.
Dalva anota que, no dia 7 de janeiro de 1965, em sessão extraordinária, a Alego declara a vacância do cargo de governador, mas também determina o arquivamento do processo contra Mauro Borges, apesar dos protestos da UDN, que lutava para que Mauro fosse processado criminalmente.
Ainda no dia 7, é eleito na Alego o marechal Ribas Júnior para o governo do Estado, com Almir Turisco (PSD) de vice. O deputado João Neto (PSD), que votou em branco, protestou: “quando chegarmos ao nosso município irão perguntar: que tal é o candidato? É gordo, é magro, é claro, é moreno? Não. Votamos porque a espada apontou lá e votamos”.
Marechal Emílio Rodrigues Ribas Júnior – 32 votos; Mauro Borges – 2 votos; deputado Benedito Vaz – 1 Voto; Branco – 4 votos.
Marechal Ribas procura então conciliar as duas forças políticas de Goiás através do preenchimento de cargos e das inúmeras visitas que faz ao interior do Estado. “O adesismo, traço característico da sociedade tradicional, nesse momento ultrapassa em Goiás esse limite, virando subserviência, adulação, principalmente por parte dos políticos da UDN”, aponta Dalva.
Ribas propõe a divisão dos cargos em três partes: um terço para UDN-PSP-PTB-PDC, um terço para o PSD e um terço de sua livre escolha, compondo a Secretaria do Governo, Secretaria do Interior e Justiça e Secretaria da Segurança Pública (fisco, polícia e justiça), “setores que sempre foram o tripé do controle do poder oligárquico em Goiás”, anota Dalva Borges.
“O marechal Ribas tem como tarefa promover a conciliação das facções políticas no Estado e, preservadas as eleições diretas para governador em 1965, eleger o candidato da UDN, assegurando o comando político às forças udenistas em Goiás e institucionalizando o regime originado no Golpe de Estado”, escreve Dalva em sua dissertação.
“A hipótese aqui formulada é que as elites agrárias, agregadas ao movimento para a derrubada do governo João Goulart, articulam uma reação ao novo regime logo que as diretrizes do primeiro governo originado no golpe ameaçam os seus interesses imediatos. Como o espaço de atuação civil está restrito, encontram representação de classe no segmento militar denominado linha dura”, completa a socióloga.
“De maio de 1964 a janeiro de 1965, essa disputa pela hegemonia militar tem o Estado de Goiás como um dos seus cenários, tomando como pano de fundo a disputa partidária regional. O governador Mauro Borges, que conseguiu dispor, no início do governo, do apoio de Castelo Branco, vai sendo progressivamente acuado pelos oficiais de linha dura, responsáveis pelos IPMs e municiados pela UDN e por setores locais do PSD. Essa articulação político-militar tem como base de classe, em Goiás, os proprietários de terras, que se vinculavam, indistintamente, a esses dois partidos”, escreve Dalva.
A sucessão de Castelo Branco se faz nesse contexto de crise e a afirmação da candidatura do general Costa e Silva, contra a escolha da Escola Superior de Guerra (ESG), garante, durante algum tempo, a hegemonia da linha dura. “Empossado, Costa e Silva responde aos interesses das bases civis da linha dura, deixando de aplicar, por exemplo, o Estatuto da Terra. A concentração da propriedade permanece e os proprietários fundiários conservam sua parcela de poder, reafirmando a modernização conservadora no Brasil. Nas décadas seguintes, o grande capital monopolista acabaria por redefinir o papel da grande propriedade agrária em benefício de interesses financeiros e da agroindústria”, aponta a socióloga.
O último projeto aprovado pela Assembleia Legislativa antes da deposição de Mauro Borges havia sido votado 13 dias antes: a Lei Orçamentária Anual (Lei nº 5650/64), aprovada em 13 de novembro de 1964, mas publicada no Diário Oficial 47 dias depois, já com Mauro deposto, em 31 de dezembro.
No dia 30 de dezembro de 1964, já com o Executivo em intervenção, a Assembleia Legislativa aprovou a Lei Estadual nº 5.735, de 30 de dezembro de 1964, que “estabelece, em obediência ao artigo 42 da Constituição do Estado, normas para o processo de julgamento do governador do Estado, nos crimes de responsabilidade e define os casos de vacância”.
O marechal Emílio Ribas ficou um ano no cargo, até ser substituído por Otávio Lage (UDN). Em 3 de outubro de 1965, ainda em eleição direta pelo voto popular (a última para governador que a ditadura militar permitiria, até 1982), Otávio Lage (UDN) foi eleito governador, vencendo José Peixoto da Silveira, candidato do PSD, por uma margem estreita (50,58% contra 49,42%, diferença de apenas 4 mil votos).
Filho de Jales Machado de Siqueira, a vitória de Otávio Lage na disputa pelo Palácio das Esmeraldas recolocou a UDN no poder pela primeira vez em 18 anos. Antes dele, o último governador udenista havia sido Coimbra Bueno. Aliado da ditadura, Otávio Lage tomou posse em 1º de janeiro de 1966, governando até 15 de março de 1971.
Em Goiás, o candidato apoiado pelos militares venceu a eleição para governador. Mas, em decorrência da eleição de governadores considerados oposicionistas, em especial em Minas Gerais e Rio de Janeiro, o Governo Federal editou, em outubro de 1965, o Ato Institucional nº 2, que, entre outras determinações, extinguiu os 16 partidos políticos existentes.
Outro ato, relacionado ao AI-2, estabeleceu e tornou possível o funcionamento de apenas dois únicos partidos, criando um bipartidarismo artificial. A Aliança Renovadora Nacional (Arena) seria uma espécie de sucessora espiritual da UDN e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) seria a chamada “oposição consentida pela ditadura”, sendo sucessor espiritual do então PSD. O pluripartidarismo só voltaria em 1980 ao Brasil, já no quase fim da Ditadura Militar, e só seria testado nas urnas, pela primeira vez, em 1982.
Em sua dissertação, a professora Dalva aponta que, nos anos que antecedem o golpe, é possível identificar três grupamentos militares. “O primeiro, composto de militares legalistas, que pensavam ser necessário conter o movimento sindical, mas dentro dos quadros do regime democrático. Preocupavam-se, fundamentalmente, com o rompimento da hierarquia e da disciplina militares. Episódios como os levantes dos sargentos e dos marinheiros faziam com que refluíssem do apoio ao governo João Goulart”.
E a pesquisadora segue: “O segundo grupo, o da ESG, é internacionalista, adepto da doutrina econômica liberal e constrói o projeto de derrubada do regime e de instalação de um novo tipo de Estado. Tem a pretensão de dar direção ao golpe e à implantação do Estado Autoritário inspirado na Doutrina de Segurança Nacional”.
Por fim, a professora detalha o terceiro grupo, “o da chamada linha dura, é composto basicamente por oficiais da Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (ESAO) e, como os outros dois, queria desarticular os mecanismos de pressão sindical. Diferenciando-se do grupo ESG, propunha expurgos mais radicais como cassações mais amplas e o estabelecimento de uma tutela militar sobre os civis”, aponta.
Na disputa pela direção do Estado, travada entre o grupo militar da ESG e os militares de linha dura, é que se inscreve o “caso de Goiás”. “Os traços da ditadura são esboçados nesse momento como na metáfora do cineasta Ingmar Bergman sobre o nazismo, no filme O ovo da serpente. Observando Goiás, no ano de 1964, é possível antecipar a conformação do regime militar nos anos posteriores. Assim, o ‘caso de Goiás’, como ficou conhecido na imprensa nacional, à época, importa menos pelo que tem de endógeno e mais por sua relevância como estratégia dos grupos militares na conquista da hegemonia no Estado”, destaca a socióloga. Interessam, nessa perspectiva, os acontecimentos que, registrados na região, têm relevância para o movimento nacional.
Os fatos ocorridos em Goiás que levaram à cassação de Mauro Borges se inserem na luta pela hegemonia militar no Estado e a intervenção em Goiás foi decisiva para afirmação da linha dura, o terceiro grupo, derrotando as intenções legalistas de Castelo Branco e antecipando a disputa pela sucessão presidencial. O objetivo era enfraquecer a hegemonia do grupo ESG.
O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) desenvolveu estudos sobre as diversas questões nacionais para a formulação de um planejamento estatal. O IBAD, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o grupo militar da ESG se aliaram nos anos 60 para debater e alinhar questões nacionais para a formulação de um planejamento estatal. Segundo a pesquisadora Dalva Borges, “utilizou técnicas de propaganda para desestabilizar o governo João Goulart e preparou a opinião pública, basicamente a classe média, para a tomada do poder (pelos militares)”.
Heloísa Maria Gurgel Starling, no livro “Os senhores das Gerais: os novos inconfidentes e o golpe de 1964”, observa que o IPES, estruturado em São Paulo e na Guanabara, como organização política da fração multinacional e associada, percebia a necessidade de estabelecer-se no nível nacional, fincando raízes em outros estados da federação.
“O IBAD se faz presente em Goiás desde 1962, financiando as candidaturas de Castro Costa e Anísio Roca, do PSD; José Luiz Bittencourt, Hermano Vieira da Silva, Benedito Vaz, Emival Caiado, da UDN; e de Alfredo Nasser, do PSP”, anota Dalva em sua pesquisa. Além de financiar os candidatos, fornecendo material impresso, o IBAD veiculava o programa “A Semana em Revista”, na Rádio Difusora de Goiânia, dos padres redentoristas.
A rádio era dirigida pelo Padre Nelson Antonino, um ativista político conservador, organizador da Liga Eleitoral Católica, que filtrou, em 1962, os nomes dos candidatos de diversos partidos aprovados e recomendados pela igreja. “Outras entidades que veiculavam propagandas anticomunistas e exaltação dos valores ocidentais, sobretudo norte-americanos, eram o Centro Cultural Brasil-Estados Unidos, o Rotary Clube e o Lions Clube”, completa Dalva.
Depois disso, o chamado terceiro grupo, da linha dura, só cresceria de tamanho dentro da ditadura militar, só vindo a perder força no final dos anos 70, com as sucessivas crises econômicas. No auge da fase mais aguda da ditadura, em 17 de outubro de 1969, com base no AI-5, o então prefeito de Goiânia, Iris Rezende, teve seu mandato cassado pela ditadura militar e teve seus direitos políticos suspensos por 10 anos. A eleição direta para governador em 1970 também seria cancelada.
No fim dos anos 1970, com a anistia “ampla, geral e irrestrita”, vários exilados voltam ao Brasil e outros que ficaram, recuperam seus direitos políticos. Em 1982, já com o pluripartidarismo (e o fim do bipartidarismo artificial), ocorre a primeira eleição direta para governador desde 1965 em todos os estados, inclusive Goiás.
Em 1982, para tentar atrapalhar a oposição, o regime militar ainda inventou o voto vinculado, a sublegenda e a proibição de coligações partidárias. Vale lembrar também que Goiás e Tocantins ainda eram um estado só (a separação só ocorreria em 1988).
Candidato de oposição à ditadura e com direitos políticos recuperados, Iris Rezende (PMDB) venceu a eleição para governador com 66,7% dos votos. Pelo PDS, representando a situação, ficou em segundo lugar Otávio Lage, com 32,5% dos votos. Athos Magno (PT) e Paulo César Timm (PDT) tiveram menos de 1% dos votos, cada um.
Com a derrota da emenda das Diretas Já em 1984, o civil Tancredo Neves seria eleito, indiretamente, presidente do Brasil em 1985, pondo fim ao ciclo de militares no poder. Adoentado, Tancredo nem chegou a tomar posse e morreu em abril de 1985. José Sarney virou presidente. Em novembro de 1989, o Brasil finalmente voltaria a ter uma eleição direta para presidente, o que não ocorria desde outubro de 1960, e elegeria Fernando Collor (PRN).
“Pela quantidade de pessoas que hoje pedem uma intervenção militar, parece que não havia esse consenso [em torno dos malefícios do golpe de 64 e da ditadura que durou 21 anos]. Na verdade, era um sentimento que estava silente na sociedade e encontrou uma conjuntura histórica para aflorar. E com muita convicção”, opina o deputado Virmondes Cruvinel (UB), ouvido pela matéria.
Já o deputado Talles Barreto (UB) assinala que a “mudança no consenso nacional em relação aos malefícios do golpe de 64 e da ditadura pode ser atribuída a uma série de fatores, incluindo revisionismo histórico, polarização política e até mesmo a falta de informações. Além disso, a percepção das gerações mais jovens sobre esse período pode ser influenciada por diferentes narrativas e contextos sociais”.
O deputado Mauro Rubem (PT) diz que há uma “tentativa de apagar a história e tentar forçar uma nova narrativa, como se a ditadura não tivesse ocorrido no Brasil, alimentada sobretudo com as novas plataformas e as fake news. Nós estamos vendo, inclusive, grandes portais da direita fazendo até mesmo narrativas de que a ditadura civil e militar de 64 foi de esquerda, o que é um absurdo. Isso nos mostra o quanto estamos pressionados pela mentira que está circulando nas redes sociais”.
Virmondes aponta que, até pela sua formação como jurista, “tem muita dificuldade para identificar benefícios em um regime que estrangulou a democracia, fechou o Congresso Nacional, mitigou as liberdades civis e perseguiu fisicamente seus opositores. No entanto, é preciso entender que parte significativa da sociedade apoiava a ditadura. A Revolução Cubana (de janeiro de 1959) era muito recente. O temor de um processo semelhante no Brasil, apesar de não se basear em fatos concretos, havia tomado corações e mentes na época”.
Mauro Rubem não vê nenhum benefício que a ditadura tenha trazido ao País, “ainda mais com pessoas que morreram, pessoas que foram desaparecidas, pessoas que tiveram seus patrimônios expropriados, o atraso na sociedade, o arrocho salarial, o fim das liberdades. Portanto, não tem nenhum benefício. O que nós temos até hoje é uma população que não conhece bem a sua história. Nós temos aí, inclusive, a grande violência que o aparelho policial ainda continua a exercer no País, agindo como se estivesse em guerra”.
O professor e historiador Rodrigo Patto Sá Motta, doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular do departamento de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), avalia que “até hoje, parte da sociedade brasileira não sabe que viveu em uma ditadura”. Virmondes afirma que não há qualquer dúvida quanto a isso. “Nós, que sempre estamos em contato com muitas pessoas, encontramos os mais diferentes níveis de informação. Por exemplo, conheci um senhor, há muitos anos, que não acreditava que o homem havia pisado na lua. Ele dizia que isso era coisa inventada pelos russos”.
Talles Barreto diz que concorda “em partes” com o que o professor Motta aponta. “Por mais que a ditadura tenha sido um período que faz parte da história de nosso País e está presente nos livros de história, a grande maioria [da população], de fato, não tem pleno conhecimento do que realmente aconteceu. A falta de conhecimento e conscientização sobre a história do País, especialmente entre as gerações mais jovens, pode contribuir para a perpetuação de mitos e interpretações distorcidas sobre o período da ditadura militar. Por isso defendemos o acesso à educação das nossas crianças e adolescentes, para que tenham conhecimento e, assim, saibam lutar por dias melhores”, afirma.
Talles, no entanto, aposta na força da democracia brasileira. “A democracia brasileira ainda enfrenta desafios, mas as instituições democráticas têm se fortalecido ao longo do tempo”. Mauro Rubem aponta que, felizmente, “o Brasil conseguiu superar uma tentativa de golpe, agora, no 8 de janeiro de 2023. De forma um pouco dolorida, mas superou. É bem verdade que nós temos que limitar o papel das Forças Armadas”.
Virmondes diz que os “acontecimentos posteriores ao 8 de janeiro de 2023, incluindo as investigações em curso, provam que a democracia brasileira foi sólida o suficiente para impedir aquele ataque. Se será no futuro, depende de nós todos que defendemos as instituições e o valor da democracia. Uma construção que exige vigilância e defesa permanentes”.
Em 1956 houve a famosa revolta de Jacareacanga para tentar derrubar o governo de Juscelino Kubitschek e implantar uma ditadura militar, mas ela falhou. Todos os golpistas foram beneficiados pela anistia concedida logo depois pelo próprio Juscelino Kubitschek, presidente da República. Vários dos golpistas do movimento de 56 participaram do golpe de 64, oito anos depois.
Sobre uma anistia aos atores envolvidos nesta última tentativa de golpe, em 2022 e 2023, Virmondes reitera “que é a favor do Estado democrático de direito e do devido processo legal”. Isso, segundo ele, “implica na correta aplicação da lei, com ampla defesa em julgamentos justos. Mas se crimes foram cometidos e as investigações comprovarem isso, a concessão de anistia pode ser uma ameaça à institucionalidade e um incentivo a novos desatinos”, pontua.
Mauro Rubem avalia que a anistia aos golpistas agora é “um crime lesa pátria” e “quem embarcar nisso está condenando o Brasil a viver sob a ameaça do coturno. Todos eles têm que ser punidos”, afirma o deputado petista. “E nós não podemos deixar que esse crime lesa pátria se repita no País. Nós vimos que a anistia, também estendida aos que participaram do golpe de 1964, deu no que deu, né? Carlos Alberto Brilhante Ustra, um assassino confesso, um torturador confesso, não pagou por seus crimes, não foi punido e tantos outros que nós sabemos que precisam ser punidos. Agora é o momento oportuno para punir todos os conspiradores, para que o nosso País não repita novamente esse desastre. Tentaram até explodir o aeroporto de Brasília logo depois da eleição de 2022”, destaca.
Virmondes aponta que, das jornadas de 2023 para cá, as questões políticas e sociais se agudizaram muito. “Sem dúvida houve uma radicalização, especialmente a partir da divulgação dos grandes casos de corrupção flagrados pela Operação Lava Jato e o surgimento de novas formas de comunicação propiciadas pela internet”, assinala.
Talles Barreto diz que, a partir das jornadas de 2023, as questões políticas e sociais no Brasil de fato se intensificaram. “Esses protestos trouxeram à tona uma série de demandas e insatisfações da sociedade. Houve um aumento da conscientização política e social, o que é positivo. Por outro lado, a polarização política também se acentuou nesse período, contribuindo para um ambiente de tensão e divisão”, pondera.
Mauro Rubem salienta ainda que a sociedade continua muito dividida e polarizada. “E existe a máquina de comunicação e de mentira, de desinformação da direita. Nós precisamos da regulação das plataformas. Porque nós vimos como tudo isso aconteceu, ao vivo, manipulando um período da história do Brasil”.
Talles Barreto diz que a sociedade brasileira continua bastante polarizada e com posições calcificadas em muitas questões políticas e sociais. A polarização é alimentada por diversos fatores, incluindo a desigualdade econômica, diferenças ideológicas e as disputas de poder. “É difícil prever quanto tempo essa polarização vai durar, mas defendo que o diálogo e a busca por consenso são fundamentais para superar essas divisões e para fazer o Brasil avançar como nação”, conclui o deputado.
*Texto de Eduardo Horário – Clique e confira a publicação original!