No dia da entrevista com o Estadão, a playlist de MV Bill pausou em Necropolítica, novo disco dos Ratos de Porão. “No Brasil de hoje, esse disco faz total sentido. E eles estão mais afiados”, chancela o carioca Alex Pereira Barbosa. Saindo do casulo após mais de dois anos de nenhum show e algumas poucas lives, o rapper, escritor e ativista social emerge do confinamento com uma paleta de novidades. Gravado durante a pandemia, o CD Voando Baixo ganha o palco pela primeira vez no setlist da turnê que estreia em Salvador, em 2 de julho, seguindo para Rio e Florianópolis, antes de ganhar outras praças Nos shows, Bill celebrará o repertório de Declaração de Guerra (2002), quando disse a que veio.
O período de afastamento também serviu para que mergulhasse (novamente) em estúdio. “Já gravei algumas coisas, mesclando minha música com ritmos mais atuais. Preservando minha essência, mas ouvindo coisas novas, novos sons”, adianta – o trabalho sai no segundo semestre. Longe de holofotes, Bill exorcizou histórias, polêmicas (como a do Free Jazz Festival, em 1999) e dramas pessoais de toda sorte que agora repassa no recém-lançado A Vida Me Ensinou a Caminhar (editora AGE).
No decorrer da escrita de A Vida Me Ensinou a Caminhar, sentiu a necessidade de separar o compositor do cronista?
Às vezes, sim. Em outras, há uma junção dos dois. Literatura e música são artes muito complementares, em alguns momentos. Tenho o meu método próprio para fazer música. Para o livro, tive de ter uma abordagem diferente. Não estava apenas escrevendo contos, mas compartilhando histórias pessoais que nunca antes haviam sido compartilhadas com o público, ainda que algumas fossem até um pouco conhecidas nos bastidores. Tive de descobrir um método próprio para isso.
Há passagens do livro que poderiam estar em suas letras, e vice-versa, não?
Algumas sim, com certeza. Nesse livro, quem me conhece apenas por músicas e entrevistas vai me conhecer de uma forma mais íntima. Há histórias que talvez não virassem música, e que entraram por conta do momento em que vivemos, saindo de uma pandemia. Comecei a escrever em 2020, no auge do problema, do isolamento. E isso funcionou como uma válvula de escape.
Em algum momento exerceu autocensura, em histórias que eventualmente não pudessem ser publicadas?
Foi até um pouco o contrário. Antes da pandemia, eu tinha outra ideia do que o livro seria. Com a pandemia, fui buscar sentimentos ainda mais profundos. Sentimentos de sarcasmo, de reflexão, de humor, alegria, tristeza, raiva. Isso tudo está lá. Acima de tudo, busquei o coloquialismo de narrar essas histórias em tom gostoso, como se conversasse com as pessoas. Acho que funcionou.
O tom do livro, mais informal que suas letras, ajuda a dar vigor às histórias?
Você matou a charada: a fluência da parada. Sem tentar poetizar, usar palavras rebuscadas. A verdade, através de minhas próprias palavras. Há livros de personalidades escritos por outras pessoas que são obras muito importantes. Eu optei pela fala visceral, como forma de narrar minha própria história. Algumas passagens me trouxeram nostalgia, outras, muita tensão. Principalmente ao recordar minha infância. Quando éramos crianças, eu e minhas irmãs levávamos uma vida normal como qualquer criança, mas, ao mesmo tempo, vivíamos o drama da insegurança alimentar. Nunca sabíamos se almoçaríamos hoje, ou se jantaríamos amanhã. Eu nunca havia exposto minha intimidade assim antes.
Como é revisitar hoje o disco Declaração de Guerra?
Durante muito tempo, mesmo que houvesse músicas novas, esse disco foi a base de nossos shows. Afinal, são músicas que marcaram muito. Ironicamente, o lado tragicômico é que letras como Só Deus Pode Me Julgar tenham versos que ainda fazem tanto sentido. Isso mostra como o Brasil é repetitivo. (Estadão Conteúdo).
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