Em um ambiente em que a proliferação das “fake news” ameaça a democracia, a missão do jornalismo de qualidade é criar leitores críticos que saibam se defender da massiva ameaça moderna da intoxicação do sectarismo.
Essa foi a mensagem de Antonio Caño, diretor do jornal espanhol “El País”, em discurso na abertura do segundo dia do 2º Encontro Folha de Jornalismo, em comemoração do 97º aniversário do jornal e do lançamento do novo Manual da Redação. “Nosso objetivo é criar leitores críticos em relação a nossas próprias informações, reportagens e editoriais, para que se defendam da desinformação; são eles, os cidadãos informados, que devem combater essa praga”, afirmou Caño.
Segundo o jornalista espanhol, não é exagerado calcular que, dentro de dois anos, metade das notícias circulando na internet serão falsas. Isso responde também a um anseio das pessoas, que , mesmo sabendo que as notícias podem ser falsas, continuam compartilhando, porque querem consumir “jornalismo” que confirme seus preconceitos.
“A desaparição da verdade por meio das ‘fake news’ equivale à desaparição do jornalismo e da democracia”, afirmou Caño, apontando que as fake news causaram instabilidade na Espanha, durante o referendo pela independência da Catalunha, no Reino Unido, durante o “brexit”, nos EUA, na eleição de 2016 e na França, na disputa entre Marine Le Pen e Emmanuel Macron.
Mas, segundo ele, é justamente neste ambiente desafiador que fica claro o papel imprescindível desempenhado pelo jornalismo de qualidade. “O jornalismo de qualidade é mais demandado do que nunca, vive uma era de ouro”, disse. “O ‘El País’ nunca teve tantos leitores, tenho certeza de que a Folha também.”
Isso porque essa realidade de pós-verdade “deixa os cidadãos se sentindo desprotegidos, e eles recorrem às publicações em que confiam, em busca de credibilidade. Os grandes jornais vivem hoje um perigo real, mas também têm uma enorme oportunidade.”
O editor espanhol disse admitir que as publicações jornalísticas estão em franca desvantagem em relação aos gigantes tecnológicos como o Facebook e o Google. Além de absorver 90% da publicidade, hoje “Facebook sabe muito mais sobre o leitor do ‘El País’, quanto ganha, suas ambições e projetos, do que nós sabemos, e por isso estamos fazendo esforços para acumular dados que valorizarão nosso tráfego.”
Para ele, isso reforça a necessidade das empresas jornalísticas colaborarem. “Os meios de prestígio precisam colaborar, sem renunciar à concorrência, que nos leva a dar versões diferentes da realidade aos cidadãos, mas colaborar em distribuição, investir em tecnologia, algo que não temos recursos suficientes para fazermos sozinhos.”
Ele não acredita que a regulamentação governamental das grandes empresas de tecnologia ou a fiscalização do governo sobre “fake news” seja uma solução perfeita. “É arriscado outorgar a uma autoridade a responsabilidade de decidir o que é verdade e o que não é, tentando evitar um mal, acabamos caindo em outro, a censura”, disse.
Para ele, construir uma série de muros regulatórios contra as grandes empresas de tecnologia é perigoso. “Na Europa, houve intensa regulamentação de Uber e Cabify, mas isso não impediu o sucesso deles; o necessário é fazer com que os táxis sejam mais limpos, cômodos e amigáveis do que o Uber. Temos que atuar com inteligência.”
Ele afirmou que o Brasil, por ser um dos maiores mercados mundiais para as redes sociais, é também um dos países mais expostos ao fenômeno das “fake news”. E este ano será decisivo para a América Latina, porque haverá eleições importantes no Brasil, Colômbia e México.
Caño sublinhou a importância de um jornal ter uma extensa rede de correspondentes no mundo. “Quanto menos correspondentes tivermos no local, menos credibilidade terá a informação que publicamos”, disse. “Seria lógico dizer que a guerra da Síria se prolonga tanto porque não há correspondentes que a cubram de forma sistemática.”
Caño criticou o uso de freelancers. “Há esses jornalistas que trabalham como se entregassem pizza de acordo com o gosto do cliente, com pepperoni para um, de outro jeito para outro, por mais honestos que sejam, esses jornalistas ganhando US$ 100 aqui US$ 100 ali” têm menos credibilidade.
O diretor do diário espanhol também questionou as iniciativas filantrópicas, cidadãs ou publico privadas de finaciar jornalismo. “São todas ainda insuficientes para substituir o sistema de livre empresa que até agora garantiu a liberdade de empresa.”
Segundo ele, a operação do “El País” no Brasil tem 4 anos e 18 jornalistas, sendo 17 brasileiros, e funciona sem departamento de marketing ou campanhas de publicidade, só no boca a boca. “É um trabalho que vamos manter nos próximos anos, seguindo com nossa vocação de jornalismo global.”
Ele elogiou a decisão da Folha de S.Paulo de deixar de atualizar sua página no Facebook, que repercutiu na imprensa mundial. “Respeito a decisão de uma publicação que decidiu falar alto com as empresas de tecnologia e tentar mudar o status quo”, disse. (Folhapress)
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