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Categorias: Política
| Em 13 anos atrás

MÍDIA, DEMÓSTENES & CACHOEIRA: O senador só não enganou a polícia

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Por Mauro Malin – Publicado no Observatório da Imprensa.

Goiás, como Minas Gerais, Tocantins e o Distrito Federal, é “terra brasileira cercada de Brasil; não tem outras fronteiras a não ser o Brasil”. A frase de ressonâncias telúricas foi dita em 1984 por João Camilo Penna num depoimento ao filme Muda Brasil, de Oswaldo Caldeira.

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Camilo Penna acabara de se demitir do Ministério da Indústria e Comércio do general-presidente João Figueiredo. Recusara-se a fazer campanha a favor do candidato governista Paulo Maluf à eleição indireta para presidente da República que se realizaria em janeiro de 1985. Dizia-se um técnico apolítico, mas explicava por que um candidato mineiro – Tancredo Neves – reunia muitos predicados para governar o país: “Quem mora em Minas, quem trabalha em Minas, quem governa Minas adquire uma visão do Brasil que nenhum outro estado, na sua formação, consegue ter”.

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“Brilhante biografia” (Veja)

Se Goiás é também “terra brasileira cercada de Brasil”, por que o Brasil – na verdade, a mídia sediada em Brasília – não consegue ter ao menos uma pálida ideia do que acontece em Goiás? Por que a Veja apresenta o senador goiano Demóstenes Torres (sem partido) como detentor de uma “até então brilhante biografia”? (“Laços financeiros”, edição 2264, de 11/4/2012). Por que a Época colocou seu nome numa lista dos 100 brasileiros mais influentes de 2009? E por que o Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar), que desde 2004 considera Demóstenes um dos “cabeças do Congresso” e em 2011 classificou-o como o oitavo parlamentar mais influente do país, nunca desconfiou de nada?

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Em círculos bem informados de Goiânia, a pergunta é por que a máscara do senador demorou tanto para cair.

Uma das explicações, atinente não apenas a Brasília, pode estar relacionada ao excesso de “trabalho per capita” nas redações, que não deixa tempo para o repórter investigar, minimamente que seja, as raízes dos assuntos em pauta.

Pode haver também restrições de gastos (medidos em tempo ou dinheiro, tanto faz) para viagens, por curtas que sejam.

Há principalmente o “jornalismo fiteiro”, baseado em gravações de escutas telefônicas. (O autor da expressão é Alberto Dines, neste Observatório da Imprensa. A tecnologia digital sugeriria agora outro nome, talvez sem o duplo sentido do primeiro, mas o fenômeno é o mesmo: calcar tudo em escutas telefônicas autorizadas pela Justiça – às vezes nem isso −, sem muito esforço de checagem e contextualização.)

História oficial

A história oficial de Demóstenes Torres está, por exemplo, na “Galeria de Demóstenes Torres 2010“ (portal Flickr) e no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas.

Demóstenes Lazaro Xavier Torres nasceu em Anicuns, perto de Goiânia, em 1961. Diz que suas primeiras lembranças de atividade política são, em 1964, “após o golpe militar, os aviões da Força Aérea Brasileira que ameaçavam bombardear Goiânia durante a deposição do governador Mauro Borges”. Os anais da psicologia não registravam, até então, memória tão elaborada numa criança de 3 anos. Faz lembrar a primeira imagem que meu querido amigo Sílvio de Oliveira Sobral, falecido em 2010, dizia, sem rir, ter guardado na memória: “O teto branco do berçário”.

Promotor de Justiça

Demóstenes formou-se em Direito. Passou em concursos públicos para delegado de polícia e promotor de Justiça. Em 1986, escolheu a segunda função e foi exercê-la no interior de Goiás, “especialmente no nordeste do estado, antes da criação de Tocantins”.

Seu relato autobiográfico reza que “progrediu rapidamente na carreira em função do elevado senso de Justiça no cumprimento da lei. Rigoroso, em todas as comarcas em que atuou foi intransigente no combate à criminalidade e à improbidade administrativa, na defesa dos interesses difusos da sociedade, bem como na proteção ambiental”.

Foi eleito procurador geral de Justiça do estado. Criou a Promotoria Ecológica Móvel, “dedicada à defesa do Rio Araguaia e reconhecida pela ONU”. Promoveu “inúmeras ações civis públicas contra prefeitos e secretários de estado pela prática de ato de improbidade administrativa. Outra grande iniciativa foi a abertura dos documentos do regime militar mantidos em sigilo pelas autoridades administrativas do estado”. Grande Demóstenes.

Secretário de Segurança

De 1999 a 2002, durante o primeiro mandato de Marconi Perillo no governo de Goiás (1999-2002), foi secretário de Segurança Pública do estado. “Ao mesmo tempo em que resolveu com êxito o sequestro do compositor de música sertaneja [Wellington Camargo], Demóstenes Torres iniciou o processo de profunda assepsia ética nas Polícias. Aprimorou substancialmente a preparação do profissional de segurança pública, conseguiu redução sistemática dos indicadores da criminalidade, organizada e desorganizada, e elevou o moral das corporações com a recomposição de vencimentos”, continua o autoelogio.

Em 2001, filiou-se ao PFL. “A atuação decisiva à frente da Secretaria de Segurança Pública e Justiça fez de Demóstenes Torres candidato natural do então PFL ao Senado na chapa encabeçada pelo governador Marconi Perillo, que concorria à reeleição. […] Fez uma campanha financeiramente pobre, mas consistente, centrada na ideia do ‘senador da segurança’, e se elegeu com votação avassaladora e histórica, além de ter impingido derrota fragorosa ao irismo” [substantivo comum formado a partir do nome de Iris Rezende Machado, ex-governador, ex-senador, ex-ministro].

Um Catão no Senado

Demóstenes foi líder no Senado do Bloco Parlamentar da Minoria (PSDB-PFL) e titular da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Correios, instalada em 2005. As investigações dessa CPMI deram origem ao escândalo do mensalão. Demóstenes destacou-se como integrante da CMPI.

Em 2006, tentou o governo de Goiás. Teve apenas 3,5% dos votos válidos. De volta ao Senado, em 2007 “destacou-se na busca de assinaturas que permitissem a instalação da CPMI dos Cartões Corporativos”. Nesse ano, o PFL transformou-se em DEM (Democratas). Demóstenes foi titular da CPMI do Apagão Aéreo. Em 2008, fez parte da CPI (comissão do Senado) da Pedofilia.

Em junho de 2009, pediu à Procuradoria Geral da República, à Polícia Federal e à presidência do Senado abertura de inquérito administrativo disciplinar contra o ex-diretor geral da Casa Agaciel Maia, que havia nomeado, sem seu conhecimento, uma funcionária para seu gabinete. Em agosto de 2009, pediu o afastamento de José Sarney (PMDB-AP) da presidência do Senado. Sarney fora objeto de denúncias e representações no Conselho de Ética do Senado.

Recordista de relatorias

“O senador é recordista de relatorias nesses 183 anos [em 2010] de existência do Senado, com mais de mil matérias relatadas. De igual forma, apresentou e conseguiu aprovar 150 projetos de lei e propostas de emendas à Constituição, com destaque para o Estatuto do Idoso, a tipificação dos crimes de sequestro relâmpago, lavagem de dinheiro, pedofilia, e pela dignidade pessoal, além da reforma do Código de Processo Penal, da Lei da Ficha Limpa, do monitoramento eletrônico dos presos e do aumento de pena para vários delitos”.

História sincera e indiscreta

A história que pode ser ouvida em círculos da capital goiana não contaminados pelo facciosismo político é a que se lê abaixo.

Demóstenes Torres sempre foi visto como uma pessoa que se adapta bem à situação do momento. Quando promotor em Goianésia, aproximou-se da família do ex-governador Otávio Laje, eleito indiretamente em 1966. Laje era um empresário muito rico, dono de usina de álcool em Goianésia. Demóstenes se aproximou, mais especificamente, de Jales Fontoura, um dos filhos de Otávio Laje. Jales foi prefeito, deputado estadual e deputado federal. Em 1999, Jales era do PFL, e foi na cota desse partido que Demóstenes assumiu a Secretaria de Segurança.

O hoje DEM, então PFL, tem dois grupos em Goiás. Um, integrado por Jales Fontoura, era liderado pelo então deputado federal Vilmar Rocha, e o outro por Ronaldo Caiado, deputado federal em quinto mandato consecutivo.

Demóstenes, entretanto, foi se aproximando de Ronaldo Caiado. Em 2002, Jales quis ser candidato a senador. Caiado fez de Demóstenes o candidato escolhido na convenção do PFL e derrubou Jales Fontoura. Quem quiser causar dissabor ao ex-deputado pode começar mencionando o nome de Demóstenes.

Marconi Perillo, reeleito naquele ano, foi o responsável pela eleição de Demóstenes, até então desconhecido do eleitorado. Consta que foi durante essa campanha que Demóstenes conheceu, em Anápolis, Carlinhos Cachoeira, nascido Carlos Augusto de Almeida Ramos. Durante sua passagem pela Secretaria de Segurança, Demóstenes fizera campanha contra o jogo do bicho, pusera a polícia na rua para impedir o funcionamento de locais de aposta. Cachoeira, para todos os efeitos práticos, não guardou ressentimento.

Do vilmarismo ao caiadismo

Do PFL vilmarista, de extração urbana, Demóstenes migrou para o PFL caiadista, cujas raízes são, como dizem alguns, o “rural profundo”: a oligarquia começou no início do século 20 com Antônio Totó Caiado, “um dos mais temidos coronéis de Goiás”, segundo o Dicionário Histórico-Biográfico. A aquisição foi importante. Aumentou a força política do caiadismo.

Demóstenes e Perillo acabaram se estranhando ferozmente. Em entrevista à CartaCapital, o senador acusou Perillo de ter comandado um ataque a tiros à sua casa, em 2005. Segundo o jornal Tribuna do Planalto, de Goiânia, em “Demóstenes: o fim de uma trajetória“, os dois “trocaram adjetivos pesados, em uma das brigas mais feias da política goiana. Na reportagem [da CartaCapital], Marconi classificou o senador de ‘inconfiável, desprovido de caráter, traidor, leviano e com uma mente doentia’. Dias depois, Demóstenes respondeu, chamando Perillo de ‘analfabeto, vagabundo, maloqueiro e ladrão’.”

Demóstenes foi fragorosamente derrotado por Perillo na eleição para governador de 2006.

Novamente com Perillo

Em 2010, quando Perillo se candidatou pela terceira vez, carente de alianças com o PSDB, seu partido − portanto com muito pouco tempo de televisão −, o apoio do DEM de Caiado, com quem estivera brigado, foi decisivo. Demóstenes e Perillo já se haviam reconciliado quando colegas na bancada goiana no Senado. Demóstenes foi reeleito senador, em campanha milionária.

O dinheiro foi fundamental para quem havia passado oito anos alimentando a imagem de caçador de corruptos. Tinha prestígio nacional, mas não havia feito o trabalho tradicional dos políticos, que constroem suas bases visitando os municípios, afagando deputados estaduais, prefeitos, vereadores, a turma que alimenta as urnas.

Demóstenes devolveu a Marconi Perillo a ajuda recebida em 2002. E Caiado só conseguiu se reeleger graças a uma coligação com o PSDB. Apenas com os votos do DEM, não teria podido voltar à Câmara.

No relatório da Polícia Federal sobre a “Operação Monte Carlo” – melhor fonte disponível − se comenta que a convicção dos investigados Cachoeira, Demóstenes e tutti quanti de que nunca seriam pegos os levou a deixar sinais abundantes e muito visíveis de atividades criminosas. Hubris, diria um cronista pernóstico. (A íntegra do relatório e do inquérito policial pode ser lida aqui; atenção: no segundo link, o documento está de cabeça para baixo.)

O reduto dos Cachoeiras

A propósito da carreira de Carlinhos Cachoeira, iniciada nos anos 1970 sob a batuta de seu pai, o bicheiro Sebastião Cachoeira, de Anápolis, existe uma ponta solta que merece apuração: em 1973, sob o governo do general Emílio Garrastazu Médici, a “Manchester goiana” foi considerada município de segurança nacional, sob a alegação de que sediava a base aérea local, encarregada da defesa da capital da República. A cidade teve oito prefeitos nomeados pelo regime militar entre agosto de 1973 e janeiro de 1986.

Eram políticos fiéis à ditadura, respaldados por militares da Aeronáutica. Conviveram muito tranquilamente com a ascensão do clã Cachoeira, assim como seus sucessores eleitos pelo voto direto, ali como em qualquer outra cidade brasileira onde haja jogo do bicho e máquinas caça-níqueis, ou seja, em milhares delas. Se tem uma coisa que não acaba, na ditadura ou na democracia, é o bicho. Muda. Amplia seus negócios. Sempre com uma pequena ou grande ajuda de amigos bem situados na vida pública.

“Limpando esse Brasil”

Os relatos sobre o modus operandi de Carlinhos Cachoeira põem a tônica na persuasão, na cordialidade, na sedução, na injeção de dinheiro e favores. A uma das pessoas que tentou corromper ofereceu primeiro dinheiro, depois acolhida em bela casa às margens do Rio Araguaia, para uma pescaria, finalmente convite para uma festa, com argumento ordinário: de mulher você gosta, não é? Não se apontam episódios em que tenha mandado algum pistoleiro “resolver um problema”. A ausência de sangue nos ajustes de contas é raríssima entre contraventores.

Quando Cachoeira disse ao governador Perillo que agora estava trabalhando na legalidade, não é de se excluir que ele próprio estivesse convencido disso. Afinal, seu escritório em Goiânia era a sede do escritório regional Centro-Oeste da Delta Construções, no setor Jardim Goiás.

Além disso, ele era fonte de informações do chefe da redação da Veja em Brasília, Policarpo Jr., e, segundo a revista (4/4), “de muitos outros jornalistas”. Em conversa com o ex-agente da Abin Jairo Martins, Cachoeira diz, impando de orgulho cívico: “Os grandes furos do Policarpo fomos nós que demos, rapaz. (…) Limpando esse Brasil, rapaz, fazendo um bem do c. para o Brasil, essa corrupção aí. Quantos já foram, rapaz”.

Um tartufo planaltino

Relações com pessoal egresso da Abin, agência subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. É pouca coisa? A ambição, entretanto, era maior: eliminar intermediários. Segundo a Época (9/4), “O alvo deles era Dilma. A carreira política do senador Demóstenes Torres era manipulada por Carlinhos Cachoeira para ampliar seus negócios e se aproximar do Planalto”.

Demóstenes deveria migrar para o PMDB e, portanto, para a famosa base aliada, o que tornaria mais fácil o acesso à presidente da República, ou auxiliares diretos dela. Negociações com Renan Calheiros e José Sarney foram iniciadas, mas Demóstenes, afirma a Época, chegou à conclusão de que o DEM pediria à Justiça a cassação de seu mandato por infidelidade partidária.

A rede Delta

A Delta, fundada em Recife em 1961 e desde 1995 sediada no Rio de Janeiro, foi a empresa que recebeu a maior soma de recursos do governo federal no triênio 2009-2011. É estrela do PAC. Seu dono é Fernando Cavendish Soares, cujo nome ficou nacionalmente conhecido devido a uma terrível tragédia: a queda, em junho de 2011, de um helicóptero no sul da Bahia. Entre as vítimas estava a namorada de um dos filhos do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho. Cabral Filho usaria o mesmo helicóptero para comparecer à festa de aniversário de Cavendish, num resort de luxo.

A lista das pessoas que, segundo o noticiário, teriam relações com a Delta inclui o deputado federal Valdemar Costa Neto (PR-SP), um dos protagonistas do mensalão, o ex-deputado José Dirceu, idem, e os ex-governadores fluminenses Anthony e Rosinha Garotinho (ambos atualmente no mesmo PR de Costa Neto e aliados ao ex-prefeito do Rio de Janeiro César Maia, do DEM), que lhe teriam destinado as primeiras obras importantes no estado do Rio. Nos governos de Cabral Filho, a Delta abocanhou muitas e valiosas obras.

A operação vazou

A Polícia Federal, que começara a trabalhar no caso em 2009, não pretendia prender Cachoeira em fevereiro, como aconteceu. Mas houve vazamento sobre a operação em curso e, como se costuma dizer, os acontecimentos se precipitaram.

Sabe-se lá onde mais chegaria a PF se continuasse investigando as ligações do bicheiro, que deve estar confiante no desenlace de seu processo criminal: contratou para defendê-lo o advogado Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça do governo Lula entre 2003 e 2007. Segundo o Radar da Veja (11/4), por R$ 15 milhões.

Mais relevante do que o saber jurídico e a experiência de seu defensor: Carlinhos Cachoeira é expert em gravações com câmeras ocultas. Ninguém sabe dizer com certeza o que ele tem em seus arquivos.

O berço esplêndido das leis

As ligações de Cachoeira fazem pensar num ensaio do sociólogo americano Daniel Bell (1919-2011) escrito em 1953: “Crime As An American Way Of Life”. Mutatis mutandis, poder-se-ia pensar em algo como “O crime como modo brasileiro de fazer política”.

A se confirmarem os métodos soft power de Cachoeira, talvez ele seja o primeiro chefão brasileiro adaptado aos padrões da redemocratização e da liberdade de imprensa, avesso a bater de frente com a opinião pública. Talvez simplesmente não tenha tido necessidade de apelar para a ignorância. Ou talvez, quem sabe, não seja nada disso, mas apenas o fato de agir em Goiás, “terra brasileira cercada de Brasil”, país onde as leis, abundantíssimas, não balizam o comportamento social dos indivíduos, ou, melhor dito, não inibem seu comportamento antissocial.

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Altair Tavares

Editor e administrador do Diário de Goiás. Repórter e comentarista de política e vários outros assuntos. Pós-graduado em Administração Estratégica de Marketing e em Cinema. Professor da área de comunicação. Para contato: altairtavares@diariodegoias.com.br .