Goiás não possui nenhum município com um programa federal voltado a pessoas expostas aos agrotóxicos, quando deveria ter em 47. O estado deveria ter implantado o programa em ao menos 30 cidades desde 2022. Enquanto isso, Goiás avança, indiferente, como um dos seis maiores consumidores de defensivos agrícolas mais tóxicos do Brasil.
Ainda assim, não possui qualquer cidade onde esteja implementado um programa federal específico para populações expostas aos defensivos.
O Diário de Goiás apurou que o programa, chamado pelo Ministério da Saúde de Vigilância em Saúde das Populações Expostas à Agrotóxicos (VSPEA), deveria estar implantado em 47 municípios goianos (lista ao final) este ano, mas nem a meta de 30 ativos, em 2022, foi cumprida.
No Brasil, de 658 municípios considerados prioritários pelo nível de exposição a agrotóxicos, somente 228 (34,7%) têm o programa implantado, e nenhum fica em Goiás. O dado está no painel virtual do programa, criado em 2022, disponibilizado e atualizado pelo ministério.
Goiás se junta a 9 estados nessa situação: Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Roraima, Amapá, Tocantins, Rondônia, Piauí, Rio de Janeiro, e Rio Grande do Norte, todos com nenhum município contemplado pelo VSPEA. E fica próximo de São Paulo e Maranhão, ambos com apenas 2% do programa funcionando.
São dois os critérios cruzados pelo governo federal para priorizar um município pelo nível de exposição e implantar o programa. O primeiro é o percentual de propriedades com maior área plantada de lavoura temporária e permanente. O segundo é a incidência de intoxicação por agrotóxicos por grupo de 100.000 habitantes por município, ocorridos entre 2018 e 2021.
A finalidade do programa é descrita assim: fortalecer a política de saúde na execução de ações integradas de vigilância, prevenção e controle dos agravos e das doenças decorrentes da intoxicação exógena por agrotóxicos.
Em 2021 a Secretaria Estadual de Saúde de Goiás chegou a definir a lista dos 47 municípios goianos prioritários por este programa. Ou seja, eram as cidades com mais pessoas expostas e que, por isto, seriam preparadas para o serviço. A intenção era implantar o VSPEA em 60% deles até 2022. De lá para cá, Goiás contiuiu sem nenhum município com o programa federal para pessoas expostas aos agrotóxicos.
Contudo a reportagem apurou que, dois anos depois, em 13 de dezembro de 2023, o órgão ainda estava em fase de capacitação de pessoal nos municípios envolvidos. Um seminário foi realizado com gestores e técnicos de vigilância sanitária e especialistas da Universidade Federal de Goiás para orientar o trabalho. A capacitação vai ser promovida também em fevereiro e março de 2024.
Na época da divulgação sobre a meta de implantação do programa em Goiás, em 13 de setembro de 2021, a secretaria noticiou: “Considerando que a taxa de crescimento do mercado brasileiro de agrotóxicos chegou a 190% nos últimos 20 anos, a própria SES observou em 2021 que os bancos de dados oficiais e pesquisas em andamento no País, apontavam que desde 2008 o Brasil se tornou o maior consumidor mundial de agrotóxicos, e Goiás é o 6º colocado no ranking brasileiro”.
Era uma justificativa que sinalizava a necessidade de agilizar a implantação da rede ligada ao programa.
E o órgão detalhou que, em Goiás, os registros de intoxicações por agrotóxicos vinham caindo desde 2018, mas confirmava que a queda era de casos com sintomas agudos. “Em relação às intoxicações crônicas é muito difícil fazer o controle dos efeitos que surgem anos após a exposição lenta e continuada a frequentes doses de pesticidas”, alertava a SES à época.
O principal foco do programa federal é reduzir a subnotificação. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) indicam que, para cada caso notificado de contaminação por agrotóxico, existem possíveis 50 casos não notificados.
Na contramão do baixo ritmo de implantação do programa e do alto consumo de agrotóxicos nos últimos anos, Goiás vem figurando como um dos campeões em intoxicação por defensivos.
Um painel disponibilizado pelo Ministério da Saúde desde 2022 mostra os municípios que necessitam do VSPEA nacionalmente. E ilustra números significativos a partir de registros anteriores.
O período exibido no painel mostra 198 mil casos de intoxicações exógenas por defensivos agrícolas no Brasil em 17 anos. Registra ainda uma média de 964 casos por mês sobre uma população de 213 milhões de habitantes.
No caso de Goiás, municípios como Aporé, Ceres, Paranaiguara e Acreúna, apareciam no dia 3 de janeiro todos com um coeficiente de incidência de intoxicação por agrotóxico acima de 1 mil pessoas por cem mil habitantes. As quatro cidades estão na lista para ter atenção do programa.
O painel revela que foram 11 mil notificações de intoxicação por agrotóxicos em municípios goianos entre os anos de 2006 e 2023. Uma média de 53,34 casos notificados por mês. Em 2019 eles chegaram a 942 casos no ano. Depois as notificações foram oscilando para menos: 761 em 2020, 750 em 2021, 758 em 2022 e, pela última atualização de 2023, verificada pela reportagem em dezembro, ficou na casa de 564 notificações.
A maioria dos casos notificados em Goiás envolveu primeiro homens e depois mulheres, nas faixas de 29 até 39 anos de idade.
Como comparação, o Mato Grosso, onde o agronegócio também é marcante, registrou 3.490 notificações de intoxicação por agrotóxicos de 2006 e 2023 – ou seja 7.500 a menos que Goiás no mesmo período, com a média de 17 casos notificados por mês, contra mais de 53 em Goiás.
E o Mato Grosso, onde também não há nenhum programa VSPEA funcionando, figurava como consumidor de 9% dos agrotóxicos utilizados no Brasil, contra 8% consumidos por Goiás, segundo dados da Embrapa.
Enquanto isso, o Paraná se destaca à frente do programa federal sendo o único com 85,7%, ou seja, 14 municípios com o VSPEA. Em seguida vem Alagoas, com 84,6% (13 municípios priorizados).
Por outro lado, o Paraná registra um índice ainda mais elevado de notificações por intoxicação exógena por agrotóxico (25 mil casos notificados de 2006 a 2023). Registra também cidades com uma incidência de mais de 4,6 mil pessoas intoxicadas por agrotóxico por cem mil habitantes, como é o caso do município de Espigão Alto Iguaçu (4.673 casos).
Cidades de outros estados também têm números impressionantes, como Rio do Campo (Santa Catarina). O município tem uma incidência de mais de 6.872 pessoas intoxicadas por agrotóxico por cem mil habitantes. Mesmo assim o estado catarinense está abaixo das 11 mil notificações de Goiás no mesmo período (SC: 8.905 notificações de intoxicações exógenas por agrotóxicos).
Esta semana, no mesmo dia em que o DG publicou a primeira reportagem da série sobre agrotóxicos – pouco mais de um mês após o jornal levantar os dados do programa junto à SES -, o órgão divulgou um release onde afirmava que está implantando o VSPEA. O material informava que o governo está promovendo ações para minimizar riscos de exposição aos defensivos.
Mas, dois anos após o primeiro anúncio, onde já havia até a indicação dos municípios prioritários, a iniciativa ainda estava restrita à realização do 2º Seminário Agrotóxicos e Saúde. O seminário ocorreu no início de dezembro.
Na oportunidade, inclusive, foi apresentada a pesquisa da coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da UFG, Daniela de Melo e Silva, Universidade Federal de Goiás (UFG). A mesma citada também pelo DG na reportagem de segunda-feira.
A pesquisa mostrou os impactos dos agrotóxicos para a saúde de trabalhadores rurais, através dos prontuários de 1.453 pacientes do Hospital Araújo Jorge, em Goiânia. “De 85% a 90% dessas pessoas (acompanhadas no projeto) foram a óbito”, citou Daniela no seminário.
Em dezembro o DG entrevistou a bióloga Kalanity Alves, que é especialista em planejamento e gestão de recursos hídricos pela Universidade Federal de Goiás e técnica da SES responsável pelo VSPEA de Goiás. Ela justificou que a pandemia foi preponderante para dificultar na implantação do programa nas cidades prioritárias do estado.
O prejuízo do período mais crítico da pandemia foi devido à desmobilização de recursos humanos ou sua priorização para ações específicas da Covid-19.
Do mesmo modo, ela entende que foi também a pandemia que gerou a queda nos registros de intoxicação por defensivos em Goiás. “Ficou mais difícil notificar e identificar o nexo causal com os agrotóxicos [durante a pandemia]”, observou. E 2023, afirmou, foi o ano de organizar os dados para iniciar a implantação no próximo ano.
A bióloga salienta que a SES atua junto com o ministério para que as prefeituras articulem as ações necessárias à implantação e que o órgão está dando o suporte de capacitação para que isso ocorra a partir de 2024.
Também observa que o trabalho envolve o levantamento de dados ambientais, de registro de notificações de intoxicação e a parte legal, que é uma portaria instituindo grupos de trabalho nos 47 municípios.
A servidora define como uma “luta contra o tempo” antecipar problemas ambientais e crônicos de saúde que podem ser gerados pelos defensivos agrícolas. E cita a prevenção ao câncer, alterações neurológicas como o mal de Parkinson, entre outros.
“Tentamos sensibilizar os municípios para o uso abusivo de agrotóxicos, para conhecer e exigir mais respeito à legislação sobre práticas como a pulverização, por exemplo, e para terem mais recursos humanos investidos nisso”, completa a técnica da SES.
A reportagem do Diário de Goiás buscou ouvir o Ministério da Saúde durante todo o mês de dezembro último (por e-mail e dezenas de ligações para a imprensa setorial de Vigilância em Saúde e Ambiente e para Assessoria Especial de Comunicação do MS). A intenção era apurar porque o cenário de implantação do VSPEA é tão frágil mesmo diante do avanço no consumo de defensivos. O órgão não respondeu nem justificou o motivo.
O período de solicitação de entrevista ou resposta coincidiu com a fase de aprovação e sanção do Projeto de Lei (PL) 1459/2022. Apelidado por ambientalistas como “PL do Veneno”, por afrouxar as leis que regulam o uso de agrotóxicos no país.
O PL foi sancionado com vetos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em pontos polêmicos (acompanhe os desdobramentos nas próximas reportagens da série do especial do DG sobre agrotóxicos). O Projeto foi publicado em edição do Diário Oficial da União (DOU) na quinta-feira, 28 de dezembro.
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Santa Helena GO
Porteirão
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Gouvelândia
Luziânia
Maurilândia
Campo Alegre de Goias
Formosa
(Fonte SES/GO)
Esta reportagem é a segunda de uma série que o Diário de Goiás preparou especialmente para abordar as implicações do consumo de agrotóxicos em Goiás e no Brasil. Para a produção da série, foram consultados cientistas, pesquisadores de campo, produtores rurais e órgãos públicos, além de levado em conta o conteúdo de dezenas de publicações a respeito.