SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Quando Mussum era provocado ao ser chamado de Azeitona, Azulão, Cromado, Fumaça, Fumacinha, Fumê, Fuscão Preto, Galega Azul, Grande Pássaro, Kuta Kintê, Morcegão, Nega da Boca do Tubo, Urubu Sem Asa, Tia Anastácia ou Velho Zuza, rebatia ironizando as origens de Renato, xingando-o de Cabecinha de Aeroporto, Cabecinha de Bater Bife, Cabecinha de Cinzeiro, Coroinha do Padre Cícero, Crooner de Orquestra de Forró, Fabricante de Jabá, Jumentinho Cearense, Jangadeiro, Mandioqueiro, Mandioca Futebol Clube, Pança-seca, Paraíba, Ô do Jabá ou Strogonoff de Carne-seca.”
Esse trecho da biografia “Mussum Forévis – Samba, Mé e Trapalhões” (Leya), de Juliano Barreto, expõe algumas das dificuldades da adaptação da vida de Antônio Carlos Bernardes Gomes (1941-1994) para o cinema atual.
Com o mundo e o Brasil tomados por acertos de contas étnicos e preocupações de correção política, o desafio é encontrar o tom para contar, no fim dos anos 2010, uma história que se passa principalmente nas décadas de 1970 e 1980 -quando chamar um negro pelos “apelidos” acima era piada familiar no horário nobre dominical.
Muçum, aliás, é uma enguia preta, e o apelido foi dado pro Grande Otelo. Mussum o odiou, e por isso pegou.
O diretor Roberto Santucci (“De Pernas pro Ar”), o ator Aílton Graça (“Carandiru”), o produtor André Carreira (da Camisa Listrada, aqui em coprodução com a Globo Filmes) e o roteirista Paulo Cursino trabalham para que o filme chegue aos cinemas em 2019, nos 25 anos da morte do ator e sambista.
Santucci, que vem de uma série de comédias de sucesso nas bilheterias, avisa que o filme de Mussum não segue exatamente essa linha. “Não vamos filmar os Trapalhões”, afirma. “Queremos mostrar quem era o Antônio Carlos”.
Pois ao chamar Aílton Graça para o papel, o diretor teve uma resposta em um nível inesperado: “Espera aí”, retrucou o ator, “vocês estão fazendo o Mussum? Esse é o trabalho da minha vida!”.
Filho de uma empregada doméstica no Jardim Miriam, em São Paulo, assim como Antônio Carlos Gomes era de uma no Méier, no Rio de Janeiro, Graça é fascinado pelo personagem dos Trapalhões desde criança. “Na TV, ele citava a Mangueira, o Palácio do Samba [quadra da escola], e eu pedia para minha mãe me levar lá”, conta ele, que quis ser fotografado para esta reportagem no mesmo lugar.
“Mais tarde, fui fazer circo. E não existia palhaço negro. Mas existia o Mussum, um personagem negro com naturalidade. Hoje, no YouTube, você vê tudo do Mussum. Mas e o Antônio Carlos? Você sabia que ele ensinou a família inteira a escrever?”, pergunta Graça, que, nas ruas, já foi tratado mais de uma vez como um filho de Mussum.
Uma das facetas mais importante da vida de Antônio Carlos Gomes, e bem menos conhecida que seu papel na televisão e cinema, é a participação no grupo Originais do Samba. O biógrafo Juliano Barreto conta que se surpreendeu ao pesquisar o tema.
“Ele foi fundador do grupo no início dos 1970. E o grupo era grande. Gravou com Elis Regina, Jorge Ben, Elza Soares. Tinha show todo dia. De tarde com o Trapalhões, e de noite com os Originais. Até que teve que sair, quando os Trapalhões começaram a fazer dois filmes por ano, a partir de 1979”, diz o jornalista.
“Ele cantava os afetos e as relações desse povo [negro]”, diz Aílton Graça. Quanto ao momento atual de luta do movimento negro, Graça é dos mais ativos. “Não acho que o filme vá negar esse olhar do que acontece hoje. Mas também não dá para sanitizar o passado. Mussum era vítima de uma estrutura e nosso desafio é mostrar isso também.”