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| Em 7 meses atrás

Em segunda parte, Campo Minado explora a procura de um “vice evangélico”

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Na segunda parte do Campo Minado dessa semana, o Diário de Goiás aborda o sensível tema da religião se misturando com o estado, assunto vigente por conta de partidos que especulam as “vantagens” de um pré-candidato a vice-prefeito ser evangélico. O pesquisador, doutor em Ciências da Comunicação e professor universitário, Luis Signates, resumiu e detalhou o “equívoco histórico” dessa vinculação.

Em entrevista ao editor-chefe do DG, Altair Tavares, o especialista, que entre seus estudos, tem a história das religiões, apontou como a inserção de instituições religiosas nos espaços de poder foi prejudicial em diferentes momentos da humanidade, indistintamente.

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Altair Tavares – Na base de Ronaldo Caiado (UB) e Sandro Mabel (UB), logo após a escolha de Mabel, vieram comentando sobre a escolha de um pré-candidato a vice do sexo feminino e evangélica. Aí teve uma exposição e o Mabel parou de fazer esse discurso, até porque tem disputa entre os partidos para ver quem vai indicar o vice. Na prática, numa base com essa composição, na minha opinião, a escolha não é do Sandro, e sim dos partidos dos apoiadores, dos grandes apoiadores. Não é uma escolha pessoal. Mas, em Goiânia, escolher um vice pelo fator religião tem sentido?

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Luiz Signates – Levando em consideração as últimas transformações das eleições, emergindo uma vertente religiosa, especialmente ligada a uma corrente evangélica, neopentecostal, muito ativa na política brasileira, se não era um critério, a questão religiosa passou a ser. Não por razões religiosas. Ingenuidade as pessoas acreditarem que as igrejas evangélicas quando entram na política estão querendo levar Deus para a política. De jeito nenhum. Muito pelo contrário, elas estão querendo trazer a política para situações em que essas igrejas têm o poder.

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O que se transaciona na política não são as coisas divinas, sagradas. O que se transaciona na política são as coisas humanas mesmo. É de poder e de dinheiro que se fala.

A escolha do vice, historicamente, leva em consideração basicamente dois critérios. Vem para vice aquele que mais traz votos, os partidos mais representativos, mais fortes. São esses que indicam o vice de uma candidatura majoritária.

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O outro critério é aquele que traz dinheiro. Vice e suplentes nas proporcionais, são os que aportam recursos nas campanhas. No Brasil, hoje, recurso privado é proibido, só se for por caixa dois. Então, basicamente [a fonte] são os fundos eleitorais partidários. Então a escolha do vice se dá nessas duas conjunções, votos e dinheiro. Onde a religião entra nisso?

Episodicamente a religião traz votos. Eu diria até que o Rogério Cruz veio pelas mãos da igreja, ele é pastor da Igreja Universal, então a religião entrou como referencial importante sim porque o então candidato Maguito Vilela tinha a expectativa de que a Universal, em associação com outras igrejas pentecostais, pudesse trazer reforço para a campanha para ela ser vitoriosa. Não sei se por isso, mas de fato a campanha dele foi vitoriosa. Então a questão religiosa hoje, político nenhum pode ficar indiferente a ela.

Altair Tavares – Não se pode desprezar

Luiz Signates – De jeito nenhum. Agora, se isso é bom para a Democracia, para a política brasileira, é outra questão. Particularmente, sou estudioso e professor de religião na PUCGO, não trabalho só com política, estudo muito religião e tenho livros publicados a respeito. Eu tenho uma reserva muito grande à mistura de religião com política partidária.

Altair Tavares – Por quê?

Luiz Signates  – Por que historicamente todas as vezes quer as igrejas ocuparam espaços de poder, ou seja, todas as vezes em que Deu, entre aspas, se tornou um estado, na história da humanidade, essa mistura gerou tragédias. Gerou ditaduras. A religião, por ser ligada a um sistema privado, ela não é naturalmente democrática, nem pluralista.

O Deus que se coloca nos espaços de poder normalmente é dogmático e exclusivista. Ele privilegia determinadas formas de ver, em relação a outras. E a Democracia é o espaço da pluralidade.

Não é a toa que no Liberalismo, quando fez as Revoluções Francesas, do século XVII para o XVIII, houve a movimentação burguesa. E a invenção da República como sistema democrático e universal ela se dá ao mesmo tempo em que se dá a laicização do estado. O estado precisa ser laico para que todas as ideias e composições possam acontecer e a disputa de poder seja livre seja realmente popular, para que os interesses da plebe, da população, sejam superiores aos interesses privados, dos grupos, ou mesmo das religiões.

A gente pode ver que o processo de modernização do estado se dá com a retirada da Igreja Católica que, na Idade Média, era o próprio espaço de poder. Até hoje o Vaticano é um estado. O sumo pontífice é um chefe de estado. Quando ele visita um país, ele tem as honras de chefe de estado. No entanto, no mundo inteiro a Igreja Católica é uma entidade privada que disputa fieis com as demais igrejas.

Então, a experiência de levar a religião ao poder não é positiva. Mas isso é diferente de politizar a religião. Os religiosos devem discutir política, devem fazer movimentos sociais em favor dos menos favorecidos, em favor dos direitos das pessoas. A própria Igreja Católica tem suas pastorais, que trabalham com direitos dos pobres, ecologia… A gente vê aquele padre em São Paulo [Júlio Lancelotti], convivendo e defendendo os direitos dos moradores de rua.

Então a religião, como movimento social, ela pode e deve ser politicamente importante. Minha desconfiança é quando um religioso passar a operar com dinheiro, com poder na conquista de postos chaves do estado que beneficiam a sua igreja. Aí não é Deus no poder, é a igreja, a instituição no poder, que passa a utilizar os seus fieis como massa de manobra, curral eleitoral para favorecer determinadas candidaturas.

Então, quando a religião se mete na política partidária e monta partidos políticos religiosos, ou identificados com determinadas igrejas, temos que tomar cuidado muito grande com isso no sentido de reforçar uma Democracia que não permita que uma igreja, uma vertente ideológica religiosa ocupe um espaço de poder a ponto de oprimir as outras. Senão isso gera tragédia, genocídio, morte, sofrimento. A experiência histórica é muito negativa nesse sentido. Uma intromissão pesada das igrejas no sistema democrático pode, inclusive, arriscar o sistema democrático.

Altair Tavares – Tem uma frase que a gente escuta muito: em nome da religião muita gente morreu, muitos foram mortos no curso da história

Luiz Signates – A história das religiões é uma história de muita crueldade. Em nome de Deus, de Jesus Cristo, já se fez tudo o que não podia. Jesus foi um líder extraordinariamente pacífico a ponto de ter se entregue a morte, não ter reagido à violência da perseguição que sofreu, no entanto, a igreja que se construiu em nome dele, terminou por negar, em vários momentos da história, a própria ética escrita no Sermão da Montanha, evangelho de Mateus, capítulos 5 e 6, que é talvez é o maior tratado de ética da história da humanidade.

Princípios de paz, de acolhida da diferença, amar seu inimigo, fazer bem aos que te perseguem. As recomendações de Jesus Cristo no sentido de sua prática, de aceitar a diferença, acolher o outro, é completamente inversa ao que o Cristianismo em vários momentos praticou.

Altair Tavares – Inclusive, raramente a gente vê citações ao Sermão da Montanha.

Luiz Signates – Por que a ética do religioso nem sempre se compadece com a ética de Jesus Cristo. A ética de Jesus é de uma radicalidade doida. Me lembro que uma vez em uma entrevista, o famoso escritor português, já falecido, José Saramago, falou que Jesus Cristo, ao solicitar que as pessoas amassem seus inimigos, solicitou uma coisa muito além da possibilidade humana. ‘Você não precisa amar os inimigos. Você respeitar o inimigo e trata-lo apenas como adversário já tá de bom tamanho’.

Mas Jesus falou em amar o inimigo, fazer o bem a quem faz o mal, orar pelos que te perseguem. Está no Sermão da Montanha… ‘Se alguém te pedir tua túnica, dê-lhe também tua capa. Quer dizer, é uma ética de uma generosidade, uma aceitação, uma fraternidade que é espantoso que movimento institucional que surge e toma conta da Europa, o Cristianismo, tenha se tornado tanto o inverso disso.

Foi o que levou uma vez o líder hindu Mahatma Gandhi a falar ‘admiro muito o vosso Cristo, mas não o vosso Cristianismo’. E disse que havia lido justamente o Sermão da Montanha e comentou com um jornalista ‘como é possível uma árvore dessa dar os frutos que nós conhecemos?’

Isso mostra que a ética de Jesus é quase um milagre quando você lê um texto daquele e contextualizar um texto como o Sermão da Montanha com a atualidade. Era uma época agropastoril, em que os princípios de Jesus Cristo não tinham qualquer significado de contexto. Ele foi confraternizar com os leprosos, pessoas que sofriam doenças de pele e eram jogadas nos vales nas cercanias de Jerusalém porque os religiosos os consideravam amaldiçoados por Deus e por isso tinham de ser afastados da convivência.

Jesus tinha uma predileção pelos pobres, os deserdados que não tem nada a ver com essas disputas de poder que seus seguidores e líderes fazem no mundo profano. Por isso, quando o Cristianismo, com sua ética, faz política como movimento social na defesa dos deserdados, a meu ver, é quando ele está próximo da ética de Jesus.

É possível e necessário que a religião politize as pessoas para atender a ética de Jesus Cristo. Agora, quando o líder religioso, instaurado a partir de sua igreja, da capacidade de movimentação que sua igreja faz, passa a transacionar dinheiro e poder com o sistema do estado, aí temos de por as barbas de molho, se preocupar e se possível colocar limites para essa intromissão, porque a gente arrisca a Democracia e não só, até o sentido de humanidade porque historicamente a religião no poder foi cruel, inclusive o Cristianismo. Nenhuma religião salva até onde tenho estudado.

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