05 de dezembro de 2025
Bastidores da fé • atualizado em 02/08/2025 às 12:36

Em documentário, evangélicos criticam influência do dinheiro e da política nas igrejas

Pastores, missionários, líderes locais e teólogos anônimos os que apontam, sem concessões, as falhas que transformaram o ideal da igreja em negócio e poder político

Lançado no dia 1º de agosto, o documentário “O lugar onde mora a esperança”, do cineasta Miguel Salvador, é um mergulho corajoso nas entranhas do cristianismo evangélico brasileiro. Em vez de ecoar críticas externas, o filme parte de dentro: são pastores, missionários, líderes locais e teólogos anônimos os que apontam, sem concessões, as falhas que transformaram o ideal da igreja em negócio e poder político.

Durante três meses, Salvador cruzou o Brasil do Nordeste ao Sul em busca de respostas para a pergunta que move toda a produção: onde a igreja errou? Para tentar responder ao questionamento, o filme traça uma linha crítica sobre a evolução do evangelicalismo no Brasil. A partir da década de 1980, o movimento evangélico passou de uma expressão marginalizada da fé para um dos principais fenômenos sociais do país. No entanto, essa ascensão veio acompanhada de escândalos, vaidade, corrupção moral e mercantilização da fé.

Os entrevistados apontam um ponto de virada: o momento em que a adoração foi substituída pela performance, a missão pastoral pelo estrelismo, e a experiência do Espírito pela cronometragem de cultos. Segundo eles, as igrejas deixaram de ser comunidades vivas para se tornarem empresas, com estratégias de marketing, culto gourmetizado e espaço VIP para fiéis de prestígio.

“Antigamente, o crescimento da igreja acontecia de forma orgânica, com pequenas congregações espalhadas, onde cada pessoa podia ser acompanhada de perto”, relembra Marcondes Soares. “As sedes eram para eventos. Você se abria congregações, congregações. Várias congregações de 100, 200 pessoas… era quando ser crente não era moda. Você era crente de verdade, né?”, destacou.

Já Ricardo Vilela observa o colapso espiritual vindo de dentro: da vaidade e da profissionalização da fé. “Aí você começa a perceber o jogo de poder tomando conta e simplesmente não dava mais. As estruturas de crescimento das igrejas passaram a funcionar a qualquer custo. Quando os projetos piramidais começaram a se infiltrar nas comunidades, tudo ficou distorcido, impulsionado por uma ânsia desenfreada por controle e influência. Foi aí que começou a se instalar aquele velho esquema: o amor ao dinheiro, o sexo como poder e esse tipo de lógica passou a dominar muitos ambientes da fé”.

Ricardo Vilela acompanhou o movimento evangélico, que passou de uma expressão marginalizada da fé para um dos principais fenômenos sociais do país. Foto: Reprodução.

Três movimentos, três crises

Salvador organiza sua investigação em torno de três grandes correntes do cristianismo evangélico brasileiro — todas atualmente em crise.

  1. Pentecostalismo clássico – Enfrenta o declínio de lideranças fundadoras, substituídas muitas vezes por herdeiros sem vocação pastoral, em estruturas marcadas por nepotismo e esvaziamento espiritual.
  2. Reformados e calvinistas – Surgiram como reação à prosperidade vazia dos neopentecostais. No entanto, se perderam em debates teológicos frios e elitismo intelectual, afastando-se da piedade e da ação social.
  3. Neopentecostalismo e movimentos carismáticos – Muitas dessas igrejas se moldaram a partir de modelos americanos de crescimento, engolidas por uma lógica de consumo, branding e culto à celebridade. A crítica é direta: “Não dá para dizer que Edir Macedo é igual a Luciano Subirá, mas ambos foram tragados pela mesma lógica”.

Em entrevista a Juliano Spyer, Miguel Salvador afirmou que desenvolve seus documentários com um método profundamente pragmático, guiado menos por idealizações artísticas e mais por um senso de urgência e funcionalidade herdado de sua vivência na igreja. “Acho que o pessoal quer cura, quer milagre, quer um bem financeiro, isso não é o poder de Deus. O poder de Deus é a generação. Então eu pensei, cara, eu acho que eu tenho que fazer algo sobre isso. Acho que ninguém falou claramente sobre esse assunto”, disse. Confira a entrevista na íntegra:

Dinheiro, política e a perda do testemunho

O documentário também toca sem pudor em uma das feridas mais profundas do evangelicalismo atual: o envolvimento excessivo com o poder político e os escândalos financeiros. O púlpito, lugar sagrado para a tradição pentecostal, passou a abrigar figuras políticas sem compromisso com o Evangelho, em troca de visibilidade e influência.

A consequência, afirmam os entrevistados, é o descrédito público. “Hoje o evangélico é mais conhecido por seu viés ideológico do que pelo amor cristão”, lamenta um pastor. Outro completa: “Quem dera voltássemos a ser conhecidos como o povo que grita aleluia. Agora somos o povo do partido”.

A fé pura

Entre a desesperança com a grande igreja institucionalizada e o vazio das promessas de prosperidade, O lugar onde mora a esperança encontra sua beleza justamente na resistência. Pequenas comunidades, igrejas locais e líderes comprometidos com a fé genuína aparecem como luzes em meio à escuridão.

São histórias de discipulado verdadeiro, de adoração nas madrugadas, de confissão mútua de pecados, de evangelismo em comunidades esquecidas. Em Cordislândia (SP), um pastor abre as portas da própria casa para jovens órfãos de afeto. No povoado de Batmaré (PI), uma igreja floresce em meio à seca e à miséria, carregada pela fé de mulheres simples e convictas. No interior da Paraíba, um antigo templo neopentecostal ressurge como uma comunidade reformada de base, com ensino, mesa compartilhada e perdão.

Há uma espiritualidade orgânica, enraizada em práticas comunitárias, que persiste onde os holofotes não alcançam. É lá que Salvador encontra o que chama de “fé pura”.

Esperança: um rio subterrâneo

O tom final do documentário não é de denúncia amarga, mas de esperança crítica. Salvador encontra, por todo o Brasil, o que chama de “remanescente”: homens e mulheres de oração, que permanecem fiéis ao Evangelho em meio à estiagem institucional. Um “rio subterrâneo” de fé, que ainda carrega a vida do que um dia foi o cristianismo vivo.

Para Salvador, a solução não está em trocar de tradição ou adotar um novo rótulo teológico, mas em voltar ao essencial: a comunhão, a doutrina dos apóstolos, o partir do pão, a oração e o amor.


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