22 de novembro de 2024
Entrevista exclusiva • atualizado em 03/07/2022 às 08:23

“É o empoderamento da burrice”, diz autor de charge que gerou demissão no colégio Visão

André Dahmer lamentou o ocorrido com o professor Osvaldo Machado, que lecionava Sociologia em colégio particular de Goiânia
Cartunista André Dahmer gostaria que a escola reconsiderasse a demissão do professor Osvaldo Machado (Foto: Reprodução)
Cartunista André Dahmer gostaria que a escola reconsiderasse a demissão do professor Osvaldo Machado (Foto: Reprodução)

O cartunista André Dahmer classifica como “empoderamento da burrice” as críticas que as disciplinas de Ciências Humanas têm recebido. “Isso é resultado desse obscurantismo, desse fanatismo religioso, desse orgulho da ignorância.”

Dahmer é o autor de um tirinha que provocou a demissão do professor Osvaldo Machado, que lecionava Sociologia no colégio Visão. “O que fizeram é uma injustiça. É lamentável que um professor, no Brasil, em 2022, passe por isso”, declarou, em entrevista exclusiva ao Diário de Goiás.

Na sua percepção, “é importante discutir o papel da segurança pública nas escolas”, que servem para ensinar “que o aluno possa ler criticamente a realidade”.

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“Consegui contato com ele [professor Osvaldo], prestei solidariedade, reforcei que ele não estava errado”, afirmou o cartunista. “Eu disse que sentia muito, porque está difícil ganhar a vida hoje, vivendo recessão com inflação, e que mandarei um desenho a ele.”

Leia abaixo a entrevista completa:

Domingos Ketelbey: Uma charge sua foi alvo de uma polêmica, que resultou na demissão de um professor de uma escola da rede particular em Goiânia. Como o senhor recebeu essa notícia e acompanhou o assunto?

André Dahmer: Comecei a receber por meio das redes sociais. Alunos se manifestaram e pediram para que eu me manifestasse. Acredito que o professor sofreu uma grande injustiça. Ele estava trabalhando de acordo com o PNE [Plano Nacional de Educação], que orienta professores de concursos e vestibulares a usarem quadrinhos como material didático não só para interpretação de texto ou questões de Português, mas também para a visão crítica dos alunos. Foi uma situação extremamente infeliz. Não sei se é verdade, mas parece que a pessoa que fez a denúncia nas redes sociais está envolvida na CPI das Fake News. Gostaria que a escola reconsiderasse, mas isso vai ser resolvido entre eles, se tiver que ter algum reparo na Justiça da injustiça que ele sofreu. É uma situação muito difícil. A gente fica pensando o que leva o país a chegar aonde chegou. As tiras falavam sobre Estado laico, e laicidade do Estado está prevista na Constituição. A pergunta sobre a tira era ‘diferencie Estado de governo’, o que é bem interessante. Gostei muito da prova, inclusive. A outra tira tratava de violência policial, em um dos países onde a polícia mais mata, segundo a Anistia Internacional, um órgão independente e presente no mundo inteiro. É importante discutir o papel da segurança pública nas escolas, da polícia que a gente quer, se a gente quer uma polícia violenta ou investigativa, policiais ganhando bem, mais humanizada e menos militarizada, que a população olhe e se sinta protegida e não tenha medo dela, que a polícia não esteja em guerra com a população.

Domingos Ketelbey: O seu trabalho estimula isso?

André Dahmer: Claro. A gente sabe sobre a violência policial que acontece no Rio de Janeiro, em São Paulo e em todas as capitais do país. É preciso instrumentos de valorização do policial e de controle da polícia.

Domingos Ketelbey: O senhor já passou por uma situação parecida, de alguma escola que já tenha censurado ou criticado seu trabalho?

André Dahmer: Jamais. Inclusive, minhas tiras caem em concursos públicos. Já foi tema da redação do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]. É muito comum que me mandem fotografia de provas em concurso, até concurso da polícia militar já teve tira minha. É muito triste um colégio, que se diz preparatório para que alunos ingressem em universidades, seja incapaz de perceber que não tem nada de ideológico no material. Hoje em dia, você apresentar um material que desperte visão crítica no aluno é visto como doutrinação e toda essa besteira que falam. A escola não foi feita apenas para ensinar que um mais um é igual a dois. A escola foi feita para ensinar que o aluno possa ler criticamente a realidade. Essa é a escola que a gente precisa, de pessoas pensantes, críticas, que forma valores e ética nos seus alunos. Não estamos formando robôs, estamos formando seres humanos. Era uma prova de Sociologia. É engraçado quando falam ‘esse professor está ensinando marxismo para os alunos’. Um professor de sociologia tem que explicar o que é marxismo, capitalismo, mais-valia. É o trabalho dele.

Domingos Ketelbey: Não dá para ignorar esses assuntos nessas matérias, não é?

André Dahmer: São fatos históricos. Não interessa se você discorda ou não do que é marxismo, socialismo e capitalismo. Você tem que falar. É como se você ignorasse outros pilares da sociedade ocidental, como Jesus Cristo. Você pode achar que Jesus Cristo nunca existiu, mas o cristianismo está profundamente enraizado na nossa cultura. Quando a gente fala em ajudar o próximo, não violência e oferecer a outra face, esses são valores cristãos. O cristianismo existe como um pilar da sociedade, como Nietzsche, Freud, Aristóteles e Platão. Não dá para falar ‘não vou dar Platão porque não gosto de Platão’. Isso não existe

Domingos Ketelbey: Como o senhor vê os ataques que as disciplinas de Ciências Humanas têm sofrido?

André Dahmer: Isso é resultado desse obscurantismo, desse fanatismo religioso, desse orgulho da ignorância. Você tem um presidente da República que fala, como um alerta, que, se o outro candidato ganhar, vão fechar as escolas de tiro para abrir biblioteca. Ele tem orgulho de dizer ‘não queremos biblioteca’. Como chegamos a esse lugar, só vamos entender mais tarde. Talvez os professores de História e Sociologia possam explicar, no futuro, o que aconteceu com o Brasil. Porque esse orgulho da ignorância, de falar que não gosta de ler, é uma coisa nova. É o empoderamento da burrice.

Domingos Ketelbey: O senhor também costuma receber ataques. Como reage?

André Dahmer: Entendo que isso faz parte dessa chegada ao poder do obscurantismo. Por exemplo, ser chamado de defensor de bandido é uma ofensa. Às vezes, me chamam de comunista, mas nunca fui comunista, e nunca vi um comunista no Brasil. Conheço pessoas progressistas, democratas de centro, de esquerda, mas as pessoas não sabem nem o que é comunismo, socialismo e a diferença entre um do outro. É um discurso ignorante, vago. E aí você não tem muita paciência para explicar algo, em duas ou três linhas, para uma pessoa que está te chamando de defensor de bandido. Ninguém é defensor de bandido. O que a gente quer é um Estado de direito funcionando, as pessoas recebendo segurança pública por meio de seus impostos da maneira correta, civilizada, e não análoga à barbárie. O resto é tudo ignorância. Não há muito o que fazer. Não tenho nem tempo para ajudar essas pessoas.

Domingos Ketelbey: O senhor conversou com o professor? Como foi a conversa com ele?

André Dahmer: Consegui contato com ele, prestei solidariedade, reforcei que ele não estava errado, que usou material recomendado pelo Plano Nacional de Educação, que está sendo um professor de verdade ao tentar submeter os alunos a uma análise crítica da realidade de não formar bois passivos diante da vida. Eu disse que sentia muito, porque está difícil ganhar a vida hoje, vivendo recessão com inflação, e que mandarei um desenho a ele. Sei que isso não vai trazer de volta o emprego. O que fizeram é uma injustiça. É lamentável que um professor, no Brasil, em 2022, passe por isso.


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