A maioria das mutações no DNA que acabam levando ao câncer não são resultado de uma vida pouco saudável ou de genes defeituosos legados por pais e avós, mas de pura falta de sorte. A conclusão pode parecer fatalista, mas foi formulada a partir de dados sólidos sobre a incidência de 17 tipos de tumores em 69 países e dá mais peso a análises que já tinham chegado ao mesmo resultado com base em registros americanos.
Coordenado por Cristian Tomasetti, da Universidade Johns Hopkins (EUA), o estudo está na edição desta semana da revista especializada “Science”. Tomasetti e seus colegas Lu Li e Bert Vogelstein usaram métodos estatísticos e análises genômicas para tentar estimar com mais precisão o papel relativo das três grandes variáveis associadas ao surgimento do câncer, designadas em inglês pelas letras E (de “environment”, ou ambiente), H (hereditariedade) e R (replicação errada do DNA por motivos randômicos ou aleatórios -a tal má sorte).
As letras E e H são facílimas de entender, obviamente. Fumar feito uma chaminé, ingerir grandes quantidades de álcool, ser obeso, ficar exposto a doses elevadas de radiação -esses e outros fatores de risco multiplicam o risco de alterações indesejáveis no DNA de qualquer pessoa, e tais mutações, se afetarem genes que controlam a correta multiplicação celular, podem desencadear o surgimento de tumores, que não passam de um conjunto de células que se pôs a proliferar rapidamente e de forma destrambelhada.
Quanto à letra H, sabe-se há décadas que os descendentes de certas famílias correm risco aumentado de desenvolver câncer por conta de mutações que afetaram o genoma de um ancestral e foram sendo transmitidas para seus rebentos -nenhum mistério aí.
Falta o R, e a questão apontada pelo grupo dos EUA é a seguinte: embora o organismo humano seja uma máquina biológica fantástica, ele não é perfeito. Toda vez que uma célula se divide, dando origem a duas células-filhas, ela precisa produzir uma nova cópia de todo o seu DNA. “Esse processo não é 100% eficiente, apesar de ficar muito próximo disso”, explica Emmanuel Dias-Neto, pesquisador do A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo, e um dos maiores especialistas em genômica do câncer no Brasil.
As pequenas ineficiências do procedimento acabam levando a errinhos de cópia nas “letras” químicas do genoma. Estima-se, por exemplo, que uma célula-tronco humana acabe sofrendo, em média, três mutações toda vez que se divide (células-tronco são as responsáveis por dar origem à diversidade celular de um órgão ou tecido, como as diferentes células que compõem o sangue ou o cérebro).
Três mutações são quase nada perto dos 3 bilhões de pares de “letras” do DNA -mas, em raros casos, elas afetam justamente os delicados genes associados à proliferação celular. E eis que surge o câncer.
Causas na balança
A questão, conforme mostram os dados recolhidos pelos autores do estudo em países de todos os continentes, é que existe uma correlação muito forte entre a incidência de tumores e o número de divisões celulares pelas quais as células-tronco passam ao longo da vida de uma pessoa.
Trocando em miúdos: se as células-tronco de um órgão se dividem muito, a chance de aparecer uma mutação que desencadeie um tumor ali também é bem mais alta. Estatisticamente, essa correlação é expressa pelo número 0,8 -o que significa que ela não acontece sempre (se fosse assim, o número seria 1), mas é muito comum. “Já os tecidos com pouca divisão de células-tronco teriam a tendência a apresentar mutações mais relacionadas a fatores ambientais ou hereditários”, aponta Dias-Neto.
Tumores como os adenocarcinomas de pulmão, típicos de pacientes fumantes, correspondem ao segundo caso, enquanto muitos tumores de próstata, por exemplo, encaixam-se no primeiro, com mutações oncogênicas (desencadeadoras de tumores) derivadas de erros aleatórios de cópia do DNA.
Ao investigar em mais detalhes uma base de dados considerada de alta qualidade, a da Cancer Research UK (órgão britânico de pesquisa sobre câncer), os pesquisadores estimaram que nada menos que 66% das mutações ligadas à doença estariam ligadas ao fator R -o proverbial azar mesmo.
Senta e espera?
Engana-se, porém, quem acha que tal conclusão é uma senha para ficar sentado esperando a morte chegar.
“Esse trabalho, na verdade, vem tentar reparar o estrago feito por um artigo anterior do Bert Vogelstein, que foi muito mal interpretado porque as pessoas acharam que câncer é algo inevitável e medidas de prevenção não servem para nada”, diz Dias-Neto.
A nova pesquisa ressalta que, embora a maioria das mutações pareça derivar do fator R, é comum que elas, sozinhas, não sejam suficientes para desencadear o câncer. Frequentemente, é necessário que duas ou mais mutações ocorram juntas para “desencaminhar” uma célula. Se uma dessas mutações for R, enquanto a outra é do tipo E, isso significa que ainda dá para prevenir aquele tipo de tumor.
De quebra, lembram os pesquisadores, mesmo quando apenas as mutações R são suficientes para produzir um tumor, o esforço de detectar e tratar o problema precocemente ajuda muito a aumentar as chances de sobrevivência dos pacientes. “Com o avanço de várias frentes, o câncer vai se tornando uma doença crônica, tratável e controlável”, afirma Dias-Neto.
Não é inconcebível, além disso, que as próprias mutações aleatórias sejam minimizadas no futuro, talvez por meio de terapias antioxidantes, que removeriam do organismo os radicais livres (átomos e moléculas com alta capacidade de induzir alterações químicas) que são um subproduto da respiração e parecem estar por trás de muitas das alterações no DNA. (Folhapress)
Leia mais sobre: Atualidades