Os atos antidemocráticos ocorridos no dia 8 de janeiro, em Brasília, quando as sedes dos Três Poderes (Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal) foram invadidas e depredadas, tiveram várias consequências. Uma delas é a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro, que durou seis meses e teve o relatório aprovado na última semana.
No entanto, é possível verificar outros efeitos práticos, como os inquéritos em tramitação no STF, que investigam um possível envolvimento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de autoridades do seu governo, e a proposição de projeto de lei, elaborado por causa dos fatos ocorridos naquele dia. Além disso, houve a identificação de vários possíveis envolvidos nos atos, com uma série de prisões preventivas e apreensão de bens deles.
O presidente do Movimento de Valorização da Advocacia e da Sociedade Civil (MOVA) e especialista em Direito Público, Thárik Uchôa, avalia que os ataques às sedes dos Três Poderes constataram a indignação de um grupo de pessoas. Ele enfatiza, porém, que também ficou evidenciada a realização de várias ações criminosas contra instituições, a exemplo da depredação do patrimônio público.
“Manifestar-se contra ou a favor das instituições públicas é algo que faz parte da democracia, porém existem meios legais, não violentos e não criminosos de se fazer protestos”, analisa. Esse também é um aspecto reforçado pelo especialista em Direito Constitucional e membro do MOVA, Ovídio Ferreira Neto. Ele avalia que “os fatos ocorridos podem ser entendidos como protesto, mas ultrapassaram os limites de legalidade e razoabilidade ao causarem vandalismo e depredação”.
Para além dessa questão, o presidente do MOVA pontua que os atos de 8 de janeiro revelaram uma certa fragilidade na prevenção e no nível de segurança das instituições públicas. “Mesmo com vários indícios de que seriam realizados protestos, não houve a movimentação de um contingente maior de agentes para proteger o patrimônio público e evitar os atos criminosos”, constata Uchôa.
Como especialista em Direito Público, ele também avalia que as condutas dos agentes públicos durante os atos no dia 8 de janeiro feriram, pelo menos, dois princípios fundamentais, que são a impessoalidade e a legalidade. O primeiro prevê que os agentes públicos não podem tratar algumas pessoas de maneira diferente ou tomar partido de qualquer linha ideológica no exercício profissional na administração pública e o segundo estabelece que esses agentes só devem fazer estritamente o que está previsto em lei.
Assim, Thárik Uchôa relembra que, “nos atos de 8 de janeiro, foram publicadas fotos emblemáticas de alguns agentes públicos junto com os supostos vândalos e foi possível perceber omissão na proteção do patrimônio público, o que fere os princípios da impessoalidade e da legalidade”. Tais condutas são passíveis de punições previstas no Código Penal, como aponta o presidente do MOVA.
O especialista em Direito Constitucional, Ovídio Ferreira Neto, enfatiza que “os crimes cometidos devem ser apurados tendo em vista também a Lei 14.197, de 2021 (relativa aos crimes contra o Estado Democrático de Direito), demandando a responsabilização dos autores diretos, dos financiadores e dos instigadores”. Para ele, os atos de 8 de janeiro servem como motivação para a consolidação e o reforço da vigência dessa lei na consciência da população brasileira.
Os ataques às sedes dos Três Poderes também foram a causa da apresentação do Projeto de Lei 83, de 2023, por parte do senador Alessandro Vieira (PSDB). A proposta inclui a motivação política entre as justificativas para a condenação por atos terroristas. Contudo, o especialista Thárik Uchôa avalia que “classificar legalmente os atos de 8 de janeiro como terroristas é fugir muito do objetivo da lei antiterrorismo, pois ela aborda como aspectos motivadores a discriminação, a xenofobia e o preconceito de raça, cor, etnia e religião”.
Relatado pela senadora Eliziane Gama (PSD), o documento da CPMI aprovado na última semana aponta para que 61 pessoas sejam indiciadas, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro, o ex-ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e o ex-chefe de Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno. Estão na lista também o ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson Torres, e o ex-ministro da Casa Civil e ex-secretário-geral da Presidência da República, Luiz Eduardo Ramos.
O relatório pede ainda o indiciamento de outros militares e civis, a exemplo de 16 empresários apontados como financiadores dos atos antidemocráticos, que podem responder por incitação ao crime. Já em relação a Bolsonaro, o parecer recomenda que ele seja acusado pelos crimes de golpe de Estado, abolição do Estado Democrático de Direito, violência política e associação criminosa.
No documento, a relatora afirmou que os atos de 8 de janeiro foram “o maior ataque à democracia da história recente”, além de denominar os participantes como vândalos e pessoas inconformadas com o resultado das eleições de 2022. O relatório tem um papel importante para que, a partir dele e junto com outras possíveis investigações, o Ministério Público decida se vai ou não propor ação judicial, apresentando denúncias contra os acusados.
O presidente do MOVA, Thárik Uchôa, avalia que “a tendência é prosseguir essa linha de identificação de fatos e autores, desembocando em responsabilizações após as ações judiciais”. O especialista Ovídio Ferreira Neto tem a mesma visão sobre o assunto, mas também destaca outros objetivos alcançados pela CPMI. “Apesar do clima de polarização, a CPMI ajudou a esclarecer uma série de fatos, resultando na demissão do ministro Gonçalves Dias do Gabinete de Segurança Institucional ainda na fase preliminar de instauração da comissão”, exemplifica.