Avança no Congresso Nacional um projeto que altera os prazos da Lei da Ficha Limpa, reduzindo o cálculo do período de inelegibilidade. O projeto é visto como desmonte da lei, tida como grande conquista dos tempos atuais em termos de moralização da política brasileira por punir a corrupção de pessoas condenadas em ações penais e afastá-las da vida pública temporariamente.
O projeto de lei (PL) 192/2023 foi aprovado na Câmara dos Deputados e também pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal. Parlamentares de partidos de direita, centro e esquerda votaram a favor. Após aprovação pela CCJ na última quarta-feira (21), agora vai a plenário e, se aprovado sem alterações, seguirá para sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O assunto é tratado dentro de uma minirreforma eleitoral vista por muitos como oportunista. Como mostrou o jornal Correio Braziliense, a ação suscita reação de advogados, de movimentos de combate à corrupção e de um dos idealizadores da lei, Márlon Reis. Ele vem classificando a ofensiva como “o mais grave atentado” contra a atual legislação, em vigor há 14 anos. Também há advogados que defendem a mudança proposta.
O projeto tramitava desde 2023. Pelas regras previstas na versão da minirreforma, os políticos cassados e condenados não poderão se eleger por oito anos contados a partir da condenação que gerou a cassação. Ou seja, um prazo menor do que o previsto atualmente, contabilizado a partir do final da pena ou do mandato.
Já no texto aprovado pela CCJ, as regras têm aplicação imediata e valem para condenações já existentes. Além disso, a inelegibilidade não poderá ser maior do que 12 anos.
O projeto é de autoria da deputada Dani Cunha (UB-RJ). Ela é filha do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (MDB-RJ), que foi preso na Lava-Jato em 2016 e condenado a 15 anos e quatro meses de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.
O envolvimento dela no assunto é emblemático porque as alterações beneficiarão o pai. Em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou a condenação de Cunha por corrupção e lavagem, sob o argumento da defesa de que o processo deveria ter sido conduzido pela Justiça Eleitoral, e não pela Justiça Federal de Curitiba. Atualmente ele está inelegível, mas pode se beneficiar dessa alteração e se tornar elegível para disputar a eleição de 2026.
“O ex-presidente da Câmara segue presente no universo político e é visto circulando pelos corredores da Câmara”, aponta o CB.
O jornal repercutiu nota do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que foi coordenado por Marlón Reis, jurista que relatou a Lei da Ficha Limpa, onde chama de “grave” a alteração na Lei da Ficha Limpa, justamente por reduzir o período de inelegibilidade até mesmo para condenados por crimes hediondos.
“Esse projeto representa um significativo retrocesso para o sistema eleitoral brasileiro, enfraquecendo um dos principais instrumentos de moralidade pública conquistados nos últimos anos. É alarmante observar que, após a aprovação da PEC que anistia partidos políticos por diversas irregularidades, agora se busca legislativamente reduzir as consequências para candidatos por crimes hediondos”, cita a nota.
O movimento viu na articulação dos parlamentares uma clara tentativa de legislar em causa própria, “em detrimento dos princípios de justiça e igualdade que devem nortear o processo eleitoral”. O MCCE conclamou a sociedade a se mobilizar contra a tramitação da proposta.
O jurista Marlón Reis, em coluna do portal especializado em política, Congresso em Foco, também reiterou os prejuízos da alteração em andamento. “A Lei da Ficha Limpa foi resultado de um raro momento de mobilização cívica. Uma iniciativa popular, apoiada por milhões, e que teve sua constitucionalidade plenamente reconhecida. Representa, assim, um consenso civilizatório que não deveria ser objeto de negociações obscuras. No entanto, a atual proposta do legislativo ameaça desfazer esse progresso”.
Ele lembra que, ao longo da existência da Lei da Ficha Limpa, não foram poucas as tentativas de minimizar seus efeitos. E aponta políticos regionais, como prefeitos e aliados de deputados e senadores que estão inelegíveis, como fonte de pressão no Parlamento.
“O Congresso Nacional, além dos vários parlamentares que enfrentam problemas e riscos com a Justiça, é pressionado por políticos locais, que estão com suas vidas políticas inviabilizadas, nem tanto pela Lei da Ficha Limpa, mas pelos crimes a que ela se refere. A pena é alta porque a acusação é grave, e a condenação é longeva porque o fato é grave”, enfatiza Reis.
O portal citou nota da Associação Brasileira de Eleitoralistas (ABRE) que fala em “incontida indignação e irrefreável revolta” com a aprovação das alterações na CCJ.
Ouvido pelo CB, o advogado Bruno Rangel, da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, considera que a lei em vigor trouxe benefícios insuperáveis no campo político. Porém ele argumenta que, desde o seu nascimento, ela demandava adequações pontuais para se tornar compatível com a Constituição. Segundo ele, alguns desses pontos estão contemplados pelo projeto atual.
“Talvez, o principal ponto seja a multiplicidade de marcos para contagem do período de oito anos de inelegibilidade, que, na prática, permite alcançar prazo superior a 20 anos, tornando-se indeterminado, na verdade”, argumentou. “Uma inelegibilidade por prazo indeterminado faz com que, nesse ponto, o país esteja mais próximo dos regimes autoritários do que dos democráticos.”
Já diante de um eventual benefício ao ex-presidente Jair Bolsonaro, Rangel entende que a lei possui um “caráter geral e abstrato” e defenda que não deve “ser feita, desfeita ou interpretada a partir das pessoas concretamente beneficiadas ou prejudicadas”.