Em agosto último, fez 70 anos do assassinato do jornalista Haroldo Gurgel. Um crime contra a liberdade de imprensa e que mobilizou Goiânia, naquela época uma jovem capital instalada havia só 20 anos.
A violência aplicada e o inusitado de silenciar um jornalista com uma saraivada de balas em plena Praça do Bandeirante, à luz do dia, foi um grande escândalo goianiense na década de 1950.
Manchou o nome do então governador Pedro Ludovico Teixeira, sobre quem recaiu a dúvida de ser o mandante e a certeza de que acolheu os assassinos.
Hoje, curiosamente, tirando textos históricos, literários ou jornalísticos, não se conhece homenagens a Gurgel. Não se sabe, por exemplo, de um busto, edificação ou monumento em seu nome em Goiânia, como ganhou o próprio Ludovico, vários.
E Haroldo Gurgel tombou num clássico atentado à liberdade de imprensa. Mas ficou por isso mesmo. Tirando historiadores e jornalistas, caiu no esquecimento.
A morte dele foi uma vingança para calar as denúncias que fazia o jornal O Momento de Goiânia. A repercussão, contudo, abalou o governo depois que milhares de pessoas carregaram o corpo em procissão até o Palácio das Esmeraldas.
O comércio fechou as portas e um muro próximo do crime apareceu pintado com a frase “Aqui tombou um moço defendendo a liberdade de imprensa”.
O pequeno periódico incomodava a gestão de Pedro Ludovico apontando seus problemas. Os principais eram falta de água e de energia elétrica. Quase uma sátira para a realidade atual em que esses problemas mobilizam a cobertura jornalística diariamente.
E foi justamente uma situação irônica, devido à falta de energia, que causou a irritação derradeira em um membro do governo.
O então chefe do novo Departamento de Energia Elétrica, conhecido como Empresa ou Companhia de Força e Luz, Pedro Arantes, determinava cortes rotineiros em Goiânia. Até que um desses cortes atrapalhou seu atendimento por um dentista.
Pedro Arantes então determinou que o serviço fosse restabelecido no dia seguinte até que ele fizesse o procedimento no consultório dentário. Depois do atendimento, mandou desligar novamente a eletricidade de Goiânia, deixando a cidade às escuras na sexta-feira, 7 de agosto de 1953.
No dia seguinte, O Momento estampou a manchete relatando e caçoando do fato: “O homem voltou e deu à luz”. A piada foi inaceitável, tanto por enfrentar o poder, expondo os privilégios dos aliados de Pedro Ludovico, quanto para uma época em que a expressão dar à luz soava altamente ofensiva ao machismo tradicionalmente predominante.
E consta que o texto era assinado por Haroldo Gurgel porque ele era temido pelas autoridades, mas o autor era outro, receoso de se expor. Já o título, foi uma escolha editorial do jornal e não dos dois jornalistas.
No mesmo sábado, 8, Arantes confrontou com Gurgel em um lugar chamado Bar Marabá, localizado bem no encontro das avenidas Anhanguera com Goiás, na Praça do Bandeirante, historicamente, ponto nevrálgico da cidade. Contam os historiadores que ele foi armado e esbofeteou o jornalista em público. Era um sinal de que a reação poderia ser ainda mais drástica.
Gurgel tinha muitos desafetos e para sua proteção possuía uma arma na redação do jornal que ficava próximo dali. Após a bofetada, chegou a buscar a arma e voltava com o dono do periódico, Antônio Carneiro Vaz, segundo consta, em busca de um táxi para fugir.
Mas surgiram quatro homens armados que primeiro espancaram os dois e depois atiraram friamente. Antônio foi atingido por oito disparos. O irmão dele, João Vaz, ouviu a confusão do jornal e se aproximou, sendo baleado quatro vezes. Apesar dos ferimentos, ambos sobreviveram.
Enquanto isso, no chão, o corpo de Haroldo Gurgel era perfurado incessantemente, por mais de uma arma, com cargas renovadas, desfalecendo para sempre crivado de balas.
Dali o jornalista que era natural do Ceará e estava em Goiás havia poucos anos, sairia carregado pela população em procissão fúnebre até a Praça Cívica, onde fica o Palácio. Dizem que o corpo foi levado em clima de muita revolta pela multidão em cima de uma porta improvisada como maca.
Um dos flashes mais memoráveis do episódio foi trazido pelo jornal Voz Operária, publicação do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), que circulava em vários estados.
O título da edição 00225/1953: “O quartel-general do crime fica no Palácio do Govêrno” (sic). Cercado por uma linha, trazia um box com outro título severo: “Eis o capanga de Ludovico”. Nesse trecho, descrevia Arantes como um “jagunço” do governador e que ele respondia a vários homicídios no Sudoeste de Goiás.
Abaixo reprodução de trecho da Edição 00225/1953 da Voz Operária – Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional
Arantes também foi descrito pelo jornal como um contumaz agressor à liberdade de imprensa. Um violento agressor que raptava e torturava jornalistas e, mesmo assim, recebia proteção de Ludovico.
A ele foi atribuída surra ao jornalista Theomar Jones, diretor da antiga Folha de Goiás, que teve a cabeça raspada e deixado nu. Além disso, cortou o fornecimento de energia para os jornais Folha do Povo e O Estado de Goiás, que ainda foi atacado a tiros, revelou a Voz Operária.
Também consta que “raptou, espancou e prendeu o jornalista Américo Fernandes”. O comum nos casos: publicações apontando as falhas do governo no fornecimento de eletricidade.
No dia seguinte ao crime, o jornal O Popular publicou como manchete principal: “Barbaramente assassinado o jornalista”. Abaixo, uma sequência de informações dava a linha da edição, mostrando a apuração da tragédia, sobre os “matadores”, e a repulsa popular “ao covarde atentado”, além das providências.
A história é contada por historiógrafos da capital goiana, como Iuri Godinho em seu livro “Como Goiânia Construiu Brasília”, publicado em 2023. Segundo ele, quando o cortejo chegou ao Palácio, com estimativa de 25 mil pessoas, ou quase a metade da população da cidade na época, encontrou o local cercado por homens armados.
Na publicação, entre os dados do inquérito, os nomes dos acusados do homicídio: Antônio Batista de Oliveira, o ‘Nenêm Calango’; José de Sá Novaes, o “Pernambuco”; Domingos Borreli e José Sarapião de Sá.
A União Nacional dos Estudantes ameaçou uma greve caso eles não fossem presos. A prisão ocorreu, mas o mandante, Pedro Arantes, foi apenas demitido porque não foi incriminado pelos quatro jagunços.
O assunto foi abordado ainda por jornalistas como Luiz Carlos Bordoni. Exemplo foi o artigo “Goiás e o estilo ludoviquista de calar a mídia”, publicado em seu blog e reproduzido no Diário de Goiás em 2012.
Sobre a repercussão, citou Bordoni: “Será focalizada na ONU a falta de liberdade de imprensa em Goiás” – dizia, à época, a manchete do Jornal do Povo, que registrou a repercussão da censura ludoviquista também no Exterior O assunto estava no Time, de Nova Iorque, no Saturday Post, de Washington, no Herald Tribune, de Chicago; no La Nación e no La Prensa, de Buenos Aires; no Times e na BBC de Londres; no Paris Soir, de Paris, e no Le Figaro, da França etc”.
Também o editor-geral do Diário da Manhã, Batista Custódio, abordou o crime no artigo “Retratos das histórias reais sem as máscaras da hipocrisia”, de julho de 2020.
Cada um, a seu modo, retomou quase os mesmos detalhes da história de apagamento brutal de Haroldo Gurgel, sinalizando senão o envolvimento direto, mas a complacência de Pedro Ludovico com os desmandos violentos de sua equipe.
“Os assassinos fugiram de revólveres às mãos no carro para o encontro no lugar marcado por Pedro Arantes, que se guarneceu na amizade de Pedro Ludovico e os amoitou no Palácio das Esmeraldas”, escreveu Batista Custódio em 2022, do alto de suas memórias, então aos 85 anos.
Por outro lado, cita ele, o governador Pedro Ludovico Teixeira chamou o secretário da Segurança Pública e mandou conduzir presos Pedro Arantes e os executores do crime. Foi instaurado inquérito policial e colhidos depoimentos.
“Confessaram que mataram em defesa da honra do chefe deles na EFL (Empresa de Força e Luz), sem o conhecimento do governador Pedro Ludovico, e que o esconderijo no Palácio das Esmeraldas foi improvisado por Pedro Arantes, que assistia à distância o que havia sido programado para ser uma surra boa e, na hora, ficou apavorado ao ver o estardalhaço da violência e os corpos do Haroldo, do João e do Antônio estirados na calçada, nos escondeu depressa no Palácio”, teriam dito, segundo Custódio.
O ex-vereador e escritor Luiz Contart, já falecido, testemunhou os excessos dos jagunços da época. Segundo depoimentos dele sobre a história do Legislativo que constam no acervo da Câmara Municipal de Goiânia, Haroldo Gurgel sempre foi polêmico e destemido. Ou seja, era um jornalista que não poupava críticas a quem quer que fosse e isso incomodava muitas das autoridades políticas da época.
Quando ocorreu o assassinato, em 8 de agosto de 1953, Luiz Contart ocupava a presidência da Câmara Municipal e estava na Europa, representando a Casa no Festival Internacional da Juventude. Já no desembarque, ainda no Rio de Janeiro, o motorista do táxi em que ele entrou foi logo relatando o fato, que alcançou grande repercussão em todo o País, ecoando também fora dele.