Política

“A extrema direita não tem interesse no jogo democrático das ideias”, diz pesquisador

Há meia década se dedicando à pesquisa da ascensão da extrema-direita no Brasil e Mundo, o professor titular de Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, João Cézar de Castro Rocha tornou- se uma autoridade no assunto. Prestes a lançar mais um livro sobre o assunto, o pesquisador disse em entrevista exclusiva ao Diário de Goiás que o movimento não se preocupa com o “jogo democrático das ideias” tampouco com “projetos diferentes”.

De acordo com o pesquisador, a direita no mundo todo tem vencido a “guerra cultural” contra movimentos de esquerda que percebeu tardiamente a derrota. “Movimentos de extrema-direita antigamente tomavam o poder por golpes. Hoje, conquistaram o eleitor e agora assumem o poder por meio do voto”.

O que há de errado nisso? Não faria parte do jogo democrático? “O que a extrema direita deseja é impor um Estado autoritário. É um projeto autoritário, cuja finalidade real é a eliminação de tudo aquilo que não seja espelho. Nesse sentido, nenhum de nós no campo democrático pode apoiar políticas extremistas [seja de direita ou esquerda]”, disse ao Diário de Goiás.

João Cezar de Castro Rocha é um dos co-autores do livro “Reconstruir a Democracia: união de amplas forças políticas e sociais para a luta ideológica”, organizado por Aldo Arantes, foi lançado, nesta segunda-feira (22/08), em Goiânia, propõe, ainda, uma “regulação da monetização” do conteúdo produzido por militantes de extrema direita nas redes sociais e explica por que isso é diferente de censura.

Leia a entrevista na íntegra com João Cezar de Castro Rocha ao jornalista Domingos Ketelbey, editor do jornal Diário de Goiás:

Domingos Ketelbey: Primeiramente, o que é a guerra cultural?
João Cezar de Castro Rocha – Em uma definição sucinta, a guerra cultural é a produção de narrativas polarizadoras, que tomam por base fake news e teorias conspiratórias. Essas narrativas, por serem polarizadoras, sempre operam na ordem do afeto. O que elas criam, na verdade, são inimigos imaginários, mas que são muito importantes porque permitem manter a base permanentemente mobilizada. Guerra cultural é uma máquina de produção de narrativa polarizadora com a intenção de obter um ganho político imediato.

DK: Em qual sentido o senhor diz que a esquerda está perdendo essa guerra?
João Cezar de Castro Rocha – A guerra cultural é a ponta de lança da extrema direita transnacional, que inaugurou um fenômeno inédito nas primeiras décadas do século 21. A extrema direita, com a sua pauta intolerante, radical, incapaz de assimilar a diferença, absolutamente indiferente a tudo que não seja o próprio espelho, tem chegado ao poder, em todo o mundo, não por meio das armas, mas através do voto, isto é, a extrema direita descobriu uma forma de conquistar corações e mentes, o que parecia ser uma característica do campo político da esquerda até a virada do século 20 para o 21. A extrema direita consegue fazê-lo porque ela se apropriou com grande agilidade e habilidade de todos os recursos tornados disponíveis pelo universo digital e pelo mundo das redes sociais. A extrema direita conquista corações e mentes porque trabalha diariamente no imaginário através das redes sociais.

DK: Mas a alternância de poder não é importante para as democracias? O que há de errado quando um movimento extremista, de direita ou de esquerda, chega ao poder?
João Cezar de Castro Rocha – A alternância no poder é rigorosamente fundamental, e é importante que isso fique bem claro, sobretudo para aqueles que, como eu, se filiam ao campo da esquerda democrática. Não apenas a alternância no poder, mas a livre organização de ideias políticas contrárias ao campo que eu defendo. A diferença da extrema direita, e nesse caso seria o mesmo para a extrema esquerda, é que ela usa uma estratégia que é a despolitização da pólis para alcançar o poder político, mas a extrema direita, ao chegar ao poder, não tem interesse algum no jogo democrático das ideias, na contradição de propósitos ou na proposta de projetos diferentes. O que a extrema direita deseja é impor um Estado autoritário. É um projeto autoritário, cuja finalidade real é a eliminação de tudo aquilo que não seja espelho. Nesse sentido, nenhum de nós no campo democrático pode apoiar políticas extremistas.

DK: Quais estratégias, dentro do campo democrático, a esquerda pode usar para virar o jogo?
João Cezar de Castro Rocha – Isso é muito importante. Sempre no campo democrático, isto é, alternância de poder, pluralidade partidária e disposição para dialogar com os diferentes. Acho que há três estratégias diferentes. Uma imediata, para as eleições de outubro. A esquerda precisa aprender que nós não podemos disputar narrativas com a extrema direita. Toda vez que se disputa uma narrativa, para fazê-lo, é preciso, em primeiro lugar, repetir a narrativa que se disputa. Em segundo lugar, desmontar a estratégia da narrativa que se disputa para só então rejeitá-la. Acontece que, nos tempos céleres do universo digital, ninguém nunca chegará ao terceiro ponto. O simples fato de reproduzir a narrativa para contestá-la apenas a reforça. O primeiro ponto é não disputar a narrativa. Porque você é pautado pela disputa que você pretende vencer, e você já perdeu. O segundo ponto é que a esquerda precisa, de maneira urgente, ocupar todos os espaços disponíveis nas redes sociais e no universo digital. Precisamos abandonar qualquer espécie de desprezo ou desconsideração da importância das redes sociais como espaço público. Com o universo digital, a noção clássica do Jürgen Habermas de espaço público mudou. Não é mais um espaço físico determinado onde os corpos se encontram. Hoje, há uma pluralidade de espaços públicos. Cada rede social constitui um espaço público em potencial. A terceira estratégia, a longo prazo, é que a extrema direita, de maneira perversa, situa a cultura na centralidade da disputa política, e a esquerda precisa fazê-lo também. Recuperar a centralidade da cultura para formação da pólis. Não para despolitizar a pólis, como faz a extrema direita, mas tornar a pólis cada vez mais consciente da necessidade de debater os próprios problemas. Pólis no sentido grego de organização da vida social.

DK: Gostaria que o senhor explicasse a ferramenta de regular o conteúdo do mensageiro para que não haja confusão com censura.
João Cezar de Castro Rocha – Isso é fundamental. Em nenhuma circunstância, não pode haver regulação de conteúdo. Se for necessário regulação de conteúdo, é porque o conteúdo é criminoso. Por exemplo, apologia à tortura, à violência, ao nazismo, à homofobia, ao racismo. Nesses casos, não é necessário uma regulação de conteúdo porque já existem artigos do Código Penal que punem como crime. Eu pertenço ao campo da esquerda democrática. Se alguém da direita, de centro ou liberal deseja propagar suas ideias através de um canal no YouTube, é perfeito que assim o faça. A minha tarefa é dialogar com a sociedade e mostrar que o projeto da esquerda democrática é mais fraterno. Não se trata de regular conteúdo nesse sentido. Trata-se de regular atividade monetizadora. Em qualquer lugar do mundo, toda atividade que visa ao lucro, oferecendo um produto, é regulada. Nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Guatemala, no Japão, no Brasil. Já temos agências que controlam isso. Um dos segredos de sucesso da extrema direita é que ela criou o que chamo de MEI, o microempreendedor ideológico. A extrema direita, em todo o mundo, monetizou a ação política e criou uma miríade de microempreendedores ideológicos, como os youtubers e todas as pessoas que monetizam a atividade política para obter lucro. Oferecem cursos, vendem livros e monetizam seus vídeos. Para isso, lançam mão sistematicamente de mentiras deliberadas. Como nesse caso o que está em jogo de fato é a monetização, portanto o lucro que se gera com essa atividade, como já ocorre em todo o mundo, uma atividade que visa lucro precisa ser regulada de maneira clara. Se um youtuber da extrema direita obtém um altíssimo engajamento porque, de maneira deliberada, produz um vídeo que afirma que o Tribunal Superior Eleitoral tem um aplicativo cuja finalidade é manipular voto ou produzir fraude, esse youtuber tem que ser questionado pelo Tribunal Superior Eleitoral, provar o que está dizendo e, sobretudo, o canal dele não pode mais ser monetizado. Então, o que eu proponho é a regulação da monetização, não do conteúdo. Retire de boa parte de militantes empedernidos da extrema direita a monetização e eles abandonam a política.

Já existe alguma proposta em tramitação nesse sentido ou algum candidato a presidente que propõe isso?
João Cezar de Castro Rocha – Creio que, da forma como estou sugerindo agora para o debate público, ainda não. Vou repetir. Se o conteúdo tiver que ser regulado, é porque ele é criminoso. Sendo criminoso, já existe regulação. Não é preciso regular, apenas aplicar a legislação. Não se deve regular o conteúdo porque eu não posso impedir que alguém pense de maneira diferente. Isso é um absurdo. Agora, se a pessoa usa as redes sociais para propagar mentiras deliberadas a fim de monetizar seus vídeos, essa pessoa precisa ser regulada, e essa atividade precisa ser questionada legalmente. (Com edição de Marcelo Mariano)

Domingos Ketelbey

Jornalista e editor do Diário de Goiás. Escreve sobre tudo e também sobre mobilidade urbana, cultura e política. Apaixonado por jornalismo literário, cafés e conversas de botequim.

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