15 de dezembro de 2024
ENTREVISTA ESPECIAL • atualizado em 20/10/2024 às 14:43

A chamada “pauta da família é um bordão para manter privilégios”, afirma Aava Santiago, vereadora mais votada

Parlamentar reeleita com mais de 10 mil votos destrinchou o que pensa da utilização da família como pauta político-partidária da forma como tem ocorrido.

A concepção de família que a direita e a extrema-direita têm trazido à luz da opinião pública como sendo uma pauta prioritária, na verdade é uma falácia, “um bordão” disfarçado e usado oportunamente para manter privilégios, considera a vereador mais votada da história de Goiânia, a tucana Aava Santiago. Esta semana, em entrevista ao jornalista Altair Tavares, editor-chefe do Diário de Goiás, a parlamentar que foi reeleita com mais de 10 mil votos, destrinchou o que pensa da utilização da família como pauta político-partidária da forma como tem ocorrido, tratando a estratégia como politiqueira.

Sem medir palavras, no seu estilo “analítico-sincera”, a vereadora, que é formada em Ciências Sociais, relembra que desde o século XIX, o argumento de defesa da família já foi usado para reprimir muitas coisas no Brasil, inclusive o próprio direito de voto das mulheres. Também enfatiza o quanto é incoerente defender a repressão ou o afastamento de um integrante da família por sua opção sexual, como se isso fosse preservar e não desfazer famílias.

A vereadora ainda fala abertamente como lida com seus polêmicos posicionamentos, que repercutem inclusive fora de Goiás, no meio religioso ao qual pertence em Goiânia. Confira a íntegra da entrevista abaixo.

Altair Tavares – Qual é a verdadeira pauta da família?

Aava Santiago – Olha, a gente precisa compreender que a pauta da família, assim chamada, a defesa da família, é um bordão quase sempre acionado quando se trata de mobilizar manutenção de privilégios, de mobilizar o enfrentamento a uma agenda de conquista de direitos. De onde eu estou tirando essa informação?

Eu fiz uma pesquisa nos anais do TSE e a gente descobriu que a primeira vez que o voto feminino entrou em votação para que o direito fosse adquirido foi na discussão da Constituinte de 1860. E naquele momento em que mulheres não podiam votar na Constituinte de 1860, houve um grande clamor por parte daquela sociedade conservadora dizendo ‘nós não podemos permitir o voto feminino porque será o fim das famílias brasileiras, vai ser decretado o fim das famílias brasileiras’.

Altair Tavares – Que absurdo…

Aava Santiago – Por causa desse discurso, desse terrorismo, o direito ao voto das mulheres foi adiado por 50 anos, por meio século. Trazendo para a atualidade, eu te pergunto, você poderia imaginar Damares Alves, Bia Kicis, Carla Zambelli, todas as mulheres que se dizem as defensoras da família, eleitas pela urna, repetindo o discurso de defesa da família da Constituinte de 1860? Não.

Elas apenas deslocaram esse guarda-chuva, defesa da família, para dizer que agora as novas demandas das mulheres do nosso tempo, pelos direitos humanos do nosso tempo, é que são contra a família. Isso mostra que, na verdade, a defesa da família sempre foi, ao longo da história, uma chave de pensamento, de mobilização, de temores, acerca daquilo que eu acredito que tenha que ser a vida do outro. É sempre sobre a vida do outro.

Nunca sobre a nossa própria vida, nem sobre a nossa própria família. Tanto é que a gente elegeu um presidente, quando eu digo a gente, o Brasil, um presidente defensor da família, que estava no terceiro casamento, que trocou todas as esposas por uma mais jovem. Isso é algo incoerente, né?

Exatamente. Então, é sempre a defesa da família sobre a vida dos outros, usando esse imaginário, esse inconsciente coletivo, operando nele valores de censura sobre as conquistas alheias. E isso tem mais de um século.

Então, primeiro é preciso escancarar isso, não é novidade. Hoje, quem usa o voto para defender a família, as mulheres que usam, não poderiam sequer ter um mandato, se os defensores da família de 1860 tivessem triunfado. Então, para começo de conversa, é isso.

Quando a gente traz para a atualidade, a gente tem uma profunda discrepância entre aqueles que dizem defender a família na arena pública, em relação aos seus resultados no que diz respeito ao bem viver das famílias brasileiras. Eu explico.

Em 2022, a já citada aqui, então Ministra Damares Alves, veio à Goiânia e fez uma fala, que depois virou alvo de investigação, uma das falas mais abjetas, e aquela fala me entristeceu muito, porque foi feita na minha igreja, na Assembleia de Deus da Fama, e num culto que, na verdade, não era um culto, a igreja foi usada como palanque para a política. Então, houve ali também o cometimento de alguns crimes, de abuso de poder religioso ou poder econômico, e do uso do espaço da igreja para reunião política. Beleza.

Foi num sábado à tarde, por isso que eu estou dizendo, não era horário de culto. E aí a Ministra Damares falou aquelas coisas, aquelas histórias sobre as crianças do Marajó, e que a gente precisava enfrentar, era sobre a sobrevivência dos nossos filhos, derrotar o presidente Lula na urna, e ela usou isso, tendo como base aquelas histórias que depois todo mundo descobriu, que eram mentirosas, fabricadas inclusive em sites de fake news de fora do Brasil. O governo que ela dizia que seria o responsável pela defesa das crianças, cortou em 98% o orçamento voltado para o combate ao trabalho infantil análogo à escravidão.

Altair Tavares – E ela era ministra.

Aava Santiago  – E ela era ministra dos Direitos Humanos, desse governo que defendia as infâncias e as famílias. Esse mesmo governo viu chegar em 33 milhões de pessoas, o número de brasileiros em situação de insegurança alimentar ou fome completa. Esse mesmo governo cortou em 90% a verba destinada à alimentação escolar.

Então, a defesa da família se faz com terrorismo moral para garantir que os meus candidatos sejam eleitos ou garantindo que as crianças possam comer melhor e viver melhor? Então, quanto mais, e isso é estatístico, quanto mais se fala em defesa da família como ferramenta de operação de temores, menos se coloca a família nos orçamentos. Isso não é de hoje, como eu disse, mas isso vem sendo operado de maneira mais brutal nos últimos tempos.

Então, quando eu digo qual é a verdadeira defesa da família? É a defesa de um Estado que funcione, de um poder público que funcione para que as famílias brasileiras tenham mais qualidade de vida.

Altair Tavares – O prefeito Paes, do Rio de Janeiro, deu essa semana um tom para isso, de certa forma, nessa ideia de que a verdadeira defesa da família é a defesa dos serviços ou benefícios ou melhoria das condições de vida dos mais pobres.

Aava Santiago – Perfeitamente, eu não ouvi essa fala do Paes, mas é isso.

Altair Tavares – E ele citou especificamente que o presidente Lula trabalha nessa perspectiva da melhoria de vida dos mais pobres.

Aava Santiago – Eu falei isso para o presidente Lula. Eu falei, o senhor zerou a alíquota da cesta básica. Isso é defesa da família.

É o pobre comer melhor pagando menos. Defesa da família é, por exemplo, criar programas de transferência de renda para que as famílias tenham dignidade e possam ocupar novos lugares. O que eu estou dizendo?

O Bolsa Família, por exemplo, criado pelos governos do PT, na verdade, inspirados no renda cidadao, o governador Marconi Perillo, aqui de Goiás, e quem está dizendo isso não sou eu. Foi o próprio presidente Lula, no dia do lançamento do Bolsa Família, que agradeceu ao Marconi pela ideia. Um programa como esse, por que foi consolidado, mesmo tendo sido atacado por vários quadros, como o próprio Jair Bolsonaro e sua turma viviam atacando o Bolsa Família, mas ninguém consegue acabar com o Bolsa Família? Porque o Bolsa Família comprovadamente tira as pessoas do ciclo de dependência.

Não existe gente que ganha Bolsa Família durante 10 anos, durante 20 anos. O Bolsa Família é uma porta de entrada na dignidade para que a pessoa possa, a partir disso, reorganizar sua vida. Porque não tem como procurar emprego com fome. Porque não tem como ficar na escola com fome.

Altair Tavares – A direita, os discursos de muitos indivíduos da direita é, a esquerda quer acabar com a família. Isso não tem sentido? Ou tem sentido político?

Aava Santiago – Veja bem. Primeiro, o que significa acabar com a família? É uma questão interessante, porque eles não conseguem responder essa pergunta.

Acabar com a família é causar mais divórcios? Porque tem uma estatística curiosa do IBGE, que aponta que os evangélicos são os que mais divorciam no Brasil. Aí meu pai até brinca, [dizendo é] porque são os únicos que ainda estão casando.

Pode ser, é verdade. Mas a gente tem aqui um ponto interessante que é, quando eles dizem destruir as famílias, do que de fato eles estão falando? Porque o que destrói a família, por exemplo, quando a gente traz o elemento que eles adoram usar, que é da homossexualidade.

O que é que destrói a família? Um adolescente ser gay? Ou ele ser espancado e expulso de casa por ser gay?

O que é que destrói a família? Uma mulher ser estuprada e ser expulsa de casa, aliás, um adolescente engravidar, ou um adolescente que está com a possibilidade de gerar uma família, afinal de contas ela está grávida, ser expulsa de casa por seus pais porque engravidou.

Altair Tavares – E uma mulher viver sob uma violência psicológica, sexual, numa família.

Aava Santiago – Exatamente. Inclusive eu criei o primeiro núcleo de enfrentamento à violência de gênero em uma Assembleia de Deus no Brasil. A gente foi para a semifinal do Prêmio Inovare com essa iniciativa de minha autoria, que fez com que a minha igreja celebrasse um convênio com a Defensoria Pública de Goiás para que os nossos pastores recebessem treinamento da defensoria para identificar a violência nos lares e orientar para o divórcio.

Na época, a igreja, em sua grande maioria, recebeu com muita alegria, mas alguns pastores reclamaram, como o pastor-presidente, dizendo, ah, o senhor está deixando o feminismo entrar na igreja, ou então, como é que a gente vai orientar a mulher a separar se a gente tem que orientar a mulher a orar mais, a buscar mais, porque a mulher sabe edificar sua casa. Esse versículo, muito usado para alimentar e acobertar situações de violência, ele ignora um princípio bíblico e teológico. A mulher sabe edificar sua casa. Não existe uma casa em um lar violento. Não existe casa ali.

Altair Tavares – Um lar violento não é uma casa.

Aava Santiago – Não é uma casa. Não é uma casa do ponto de vista espiritual. Não é uma casa do ponto de vista moral.

Não é uma casa do ponto de vista social. Então, a mulher é mais sábia e ela edifica, sim, a sua casa quando ela sai desse vínculo violento para salvar os seus filhos. Ali ela está edificando sua casa, entendeu?

Então, o uso equivocado de elementos da fé, inclusive, para a manutenção das desigualdades e das barbares, isso, sim, é contra a família. Eu tive o privilégio, a honra de ver o meu pastor, um homem de Deus, chorando quando ele veio me interpelar sobre a minha defesa do direito das pessoas LGBTQIA+. Dizendo, ‘minha filha, seus discursos, sua fala sobre isso estão causando muito reboliço na igreja. Todo dia um pastor me manda um vídeo reclamando e tudo mais’. E eu citei um exemplo para ele. Eu falei, pastor, o fulano, que é lá da igreja, o senhor viu nascer.

E o senhor sabe que ele apanhou do pai dele quando ele informou, quando ele admitiu, porque todo mundo já sabia, que ele era gay. E o senhor chamou a mãe dele, que é uma missionária, e disse para ela que era para ela aceitar o filho dela em casa para que ele não apanhasse na rua. O senhor destruiu ou edificou uma família?

Ele falou, ‘edifiquei uma família’. Se esse rapaz sai de casa porque foi expulso pelo pai, porque o pai acha que dá satisfação para o senhor e para Deus, e que essa satisfação é apartar o filho, aí ele é espancado na rua. E aí a mãe e o pai recolhem aquele corpo, e o senhor vai fazer o culto fúnebre.

Como o senhor vai se sentir? Ele caiu no choro, como eu estou querendo cair aqui agora. E eu disse, essa é a defesa da família.

É a defesa da dignidade das pessoas. É a defesa de que ninguém seja massacrado por aquilo que é. É a defesa de que o Estado brasileiro, de que o dinheiro público seja colocado à disposição para que as pessoas vivam melhor e não se sintam empoderadas no direito de cercear a liberdade de quem quer que seja.

Altair Tavares – Eu entendi, acho que está muito claro isso, viu? É tocante essa história, é muito tocante. Voltando, vamos fazer um resumo dessa situação? Defender a família é defender a melhor condição de vida, é dar dignidade para as pessoas, alimento, emprego, condições sociais para desenvolvimento, educação, ou seja, o conjunto é grande. Nós estamos tratando de direitos humanos?

Aava Santiago –  Exatamente. Altair, eu tive a oportunidade de trocar uma ideia muito legal com o presidente Lula sobre isso.

Altair Tavares – A senhora falou para ele sobre isso?

Aava Santiago – É, ele me perguntou, eu respondi, falei, eu acho que o senhor tem que adotar isso. Por quê? Porque é um insulto às famílias brasileiras, é um insulto que meia dúzia de oportunistas digam que eles defendem a família porque eles estão enfrentando o inimigo imaginário que é a escola com banheiro unissex.

Como eu disse a ele e repito aqui, em um país que 20 milhões de crianças não tem banheiro em casa. Antes de vir aqui para o seu programa, eu estava reunida com o conselheiro do TCE, o doutor Ferrari, que é o presidente nacional do Conselho de Primeira Infância dos Tribunais do Brasil, dos Tribunais de Conta do Estado do Brasil. E ele me apresentou um dado que o tribunal levantou de que a falta de saneamento básico incide em duas gerações a mais daquela família em situação de pobreza.

Duas gerações a mais. Esses caras estão falando de banheiro unissex para a continuidade da pobreza. Porque aí o cara não tem esgoto, o cara, por consequência, aquela família adoece mais, aquela família tem menos acesso porque evade mais da escola e ela continua pobre.

E a gente está falando de um país em que a grande maioria das pessoas não é herdeira de sobrenome nem de fortuna, mas de tragédias. São três, quatro gerações de famílias. Eu sempre conto a minha história porque o meu avô e a minha avó fizeram e estiveram em trabalho análogo à escravidão no campo.

A minha mãe foi dada pelo meu avô aos sete anos de idade para a casa de uma família, para ser matriculada na escola, porque meu avô não tinha condições. Aí meu avô voltou para o campo, essa família nunca matriculou minha mãe na escola. Ela foi feita de escrava doméstica dos sete anos para frente e ela foi empregada, então, até os 18 anos.

Meu pai morreu quando eu era adolescente e eu fui trabalhar junto com a minha mãe para sustentar a casa e o meu filho, Davi, é o primeiro de quatro gerações a não ter que trabalhar na infância. São quatro gerações para a gente conseguir começar a mudar isso. Então, quando esses caras dizem que defendem as famílias, nós temos milhões de famílias brasileiras deixando como herança para os seus filhos a desigualdade.

Então é justamente disso que se trata a defesa da família. Redução das desigualdades, para que os nossos filhos tenham histórias melhores que as nossas para contar.


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