Os primeiros resultados dos estudos sobre o uso medicinal da Cannabis, popularmente conhecida como maconha, foram descritos na década de 1970, por um grupo de pesquisadores brasileiros da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Os efeitos antiepilépticos e anticonvulsivantes do canabidiol, um composto encontrado na planta, se mostraram uma boa alternativa para o tratamento da epilepsia.
De lá para cá os estudos avançaram e a substância demonstrou seus efeitos positivos no tratamento de tantas outras doenças e síndromes, entre eles o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). O uso medicinal da maconha se mostrou promissor no tratamento do Parkinson, Alzheimer, para controle de crises de ansiedade, insônia, autismo, dores neuropáticas, redução de náuseas e vômitos em pacientes que fazem tratamento de câncer, além de depressão.
Em muitos destes casos, os remédios comumente utilizados nos tratamentos convencionais falharam ou não foram tolerados pelo paciente. Como ocorre com pacientes com TDAH, que utilizam medicamentos tarja preta, que muitas vezes possuem efeitos adversos.
O TDAH é um transtorno de neurodesenvolvimento que provoca desatenção, impulsividade, inquietação e hiperatividade. O transtorno afeta os níveis de dopamina, um neurotransmissor responsável pelo controle de habilidades cognitivas, como memória, atenção, ansiedade e variação de humor.
Os sintomas impactam negativamente a vida do portador, que sente dificuldades tanto em situações de convivência social, quanto escolar e profissional, como explica a psiquiatra e membro da Sociedade Brasileira de Estudo da Cannabis (SBEC), Lorena Abrão.
“Tais sintomas repercutem negativamente na vida do paciente, pois portadores de TDAH apresentam baixa capacidade de função executiva, dificuldade na cognição social e no controle de impulsos, desorganização, procrastinação, impersistência em tarefas, falta de foco, inquietação mental, dificuldade de seguir rotinas, entre outros”, ressalta a médica. Para muitos pacientes, o uso dos remédios acaba por causar tantas queixas e dificuldades quanto o próprio transtorno, afetando a qualidade de vida do usuário.
Pesquisas mostraram que o uso dos fitocanabinóides, compostos derivados das plantas Cannabis, auxiliam na diminuição dos sintomas e queixas dos pacientes com TDAH, principalmente nos casos em que o tratamento convencional com remédios tarja preta, como a Ritalina, por exemplo, não surtiram os efeitos desejados.
O clínico geral, prescritor de Cannabis medicinal, Vinícius de Mesquita, afirma que o tratamento com a planta é indicado em casos específicos. “É recomendado quando há uma condição clínica definida, em que outras opções de tratamentos estiverem esgotadas e que dados científicos sugerem que possa ser eficaz”, afirma.
Componentes da Maconha
As plantas da família Cannabis, ou seja, da maconha, possuem 3 subespécies: Cannabis sativa, Cannabis ruderalis e Cannabis indica. A Cannabis sativa é mais utilizada medicinalmente, e possui 80 canabinóides, entre eles o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC), os mais usados e conhecidos popularmente.
Os dois compostos atuam no sistema endocanabinóide, que é um complexo sistema de sinalização celular identificado no início de 1990, e que, conforme demonstraram as pesquisas, desempenha papel na regulação de uma série de funções e processos no nosso corpo, incluindo sono, humor, apetite, memória, fertilidade, entre outros.
A professora titular do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás, Renata Mazaro e Costa explica que o sistema endocanabinóide está distribuído em todo o sistema nervoso central, que processa todas as informações dos impulsos recebidos pelo cérebro e que os neurotransmissores deste sistema se assemelham às moléculas dos compostos da maconha.
“O sistema endocanabinóide são neurônios que produzem neurotransmissores que são semelhantes ao canabidiol e o THC, principalmente a molécula, que acaba sendo semelhante ao THC. Esse sistema está distribuído no sistema nervoso central, e em outras regiões do nosso corpo, em vários locais do nosso organismo”, pontua.
De acordo com a farmacologista, os mecanismos naturais do sistema nervoso se assemelham à dinâmica dos canabinóides. A especialista afirma que nenhum medicamento faz nada novo no nosso corpo. Segundo ela, “tanto o canabidiol quanto o THC vão usar as estruturas que os nossos neurônios possuem, do nosso sistema endocanabinóide”.
Quais as diferenças entre os canabinóides?
Renata pontua que há diferenças entre os canabinóides, o que explica os diferentes tipos de uso e concentrações de cada uma das substâncias nos medicamentos. “O canabidiol, especificamente, atua através do bloqueio de uma enzima que degrada os endocanabinóides. Os endocanabinóides são os neurotransmissores que nós temos no nosso corpo, que no caso, a anandamida – um neurotransmissor que os nossos neurônios do sistema endocanabinóide produzem – é a mais comum”, ressalta.
Pesquisas demonstraram que o CBD e o THC atuam na ligação da anandamida aos receptores no cérebro, e por isso, podem ser utilizados no tratamento da perda de memória. A FAAH, uma enzima responsável por degradar a anandamida e fazer o controle, quando inibida, também melhora os mecanismos de dor. Ou seja, a dupla CBD mais THC tem potencial para estimular a memória, reduzir a dor e influenciar no apetite, efeitos conhecidos, especialmente no uso recreativo da maconha, que podem ser interessantes no uso medicinal, atuando nos sintomas de doenças.
A professora da UFG explica que o canabidiol atua “bloqueando uma enzima que chama FAAH, que degrada anandamida, o que impede a FAAH de atuar, acumulando anandamida nos neurônios”. Já o THC “atua mais fortemente nos receptores”. A anandamida é uma molécula que participa de funções importantes em diversas áreas do corpo, associada ao apetite, memória e dor. Assim como a anandamida, o THC pode aliviar dor, náusea, relaxar a musculatura e estimular o apetite.
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Ação dos canabinóides no organismo
A farmacologista ressalta que para os pacientes que possuem TDAH, o tratamento com Cannabis medicinal pode ser interessante, exatamente pela dinâmica da atuação do fármaco, que age nas regiões do cérebro responsáveis pela memória e emoção, tão afetadas pelo transtorno. “O sistema endocanabinóide está associado à questão de memória e ao controle de emoções. Temos um conjunto de informações pela distribuição do sistema endocanabinóide nessas regiões do sistema nervoso central, no córtex pré-frontal, que traz a questão da atenção, que é muito importante para o paciente que tem TDAH. Nós temos esse sistema endocanabinóide muito bem distribuído nas regiões de memória e de emoção”, explica a especialista.
Renata define o sistema endocanabinóide como um diplomata das sinapses neurológicas. “Entendo ele como um modulador, hora ele estimula como uma via que é mais associada, por exemplo, a questão da atenção e hora ele inibe uma via associada, por exemplo, a emoções muito fortes, de violência. E ele vai modulando o cérebro, é como se fosse um ajuste fino das sinapses, ele vai fazendo a conversa química no cérebro para harmonizar as sinapses”, conclui.
Em termos de efeitos terapêuticos, o CBD se destaca “tem vários estudos mostrando efeitos anti inflamatórios, no controle da dor, efeito anticonvulsivante, antiepiléptico, no bloqueio da convulsão em si e, também, tem estudos antipsicóticos, usado no quadro de esquizofrenia”, ressalta Mazaro. Porém, em muitos tratamentos, os dois compostos, tanto CBD quanto o THC são usados conjuntamente. Mas, a diferença é que o THC possui uma característica associada à dependência não observada no CBD.
“O THC traz no usuário a característica de instalar a síndrome de dependência, que popularmente chamamos de vício. O canabidiol não tem essa característica. Ele tem os efeitos clínicos medicinais, mas sem esse efeito de criar a síndrome de dependência”, pontua a farmacologista, e completa. “O canabidiol tem efeito psicotrópico, mas não causa os efeitos psicomiméticos, que seria a questão da síndrome de dependência”, explicando que ambos atuam no sistema nervoso central, mas não possuem o mesmo potencial de causar efeitos alucinógenos e psicotrópicos, pelos quais a maconha é conhecida.
A psiquiatra Lorena Abrão afirma que para pacientes com TDAH, ela costuma prescrever o fármaco composto, sem isolar o CBD. “Estudos mostram que o uso da planta em sua totalidade, ou seja, sem isolar apenas um componente, tem efeitos muito mais benéficos e exige menores doses do medicamento. O THC também tem papel importante na terapêutica em questão”, ressalta a médica. De acordo com Lorena, o uso do óleo da Cannabis, com THC e CBD é o mais indicado já que “a interação do canabidiol com o THC diminui os efeitos psicotrópicos do THC. Óleos sem THC não apresentam riscos de tolerância ou dependência”, reitera.
Uso medicinal
Hoje em dia a Cannabis medicinal já é prescrita para uma série de tratamentos, mas, cada caso de recomendação de uso precisa ser avaliado individualmente. Segundo o médico Vinícios de Mesquita, que prescreve o fármaco aos seus pacientes com diversos quadros de doenças, é necessária uma avaliação criteriosa, e os pacientes recebem orientações específicas para o uso.
Vinícius afirma que a fórmula, com concentração dos canabinóides e frequência de uso, depende de cada paciente. “Depende do perfil do óleo (concentração de CBD, THC e demais canabinóides) e do paciente. A contra indicação maior é na presença de alergia ao composto ou aos componentes de cada óleo”, diz ele.
Ainda de acordo com Mesquita, o avanço do quadro também é individualizado e depende da resposta de cada organismo. “O tempo para sentir os efeitos depende da dose terapêutica, que envolve também o metabolismo do paciente, o grau de acometimento do sintoma, etc. No geral, é sentido dentro das primeiras semanas de uso, mas pode levar de 3 a 6 meses para atingir a dose terapêutica”, salienta.
O uso recreativo se diverge do uso medicinal, e por muito tempo, até mesmo pesquisar os efeitos da Cannabis era considerado crime no Brasil. O uso medicinal legalizado da Cannabis só foi permitido a partir de 2015 no país, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a exclusão do canabidiol da lista de substâncias proibidas. Depois que foi reclassificada como substância controlada, ela pode ser receitada e importada sem tributos federais.
Dificuldades no acesso e alto custo no medicamento
Vinícius expõe que após a decisão da Anvisa, o tratamento ficou mais acessível e possível. “A partir do registro sanitário na Anvisa, o acesso e uso medicinal do CBD está liberado, especialmente das composições que tenham até 0,2% de THC”. Ainda de acordo com ele, doses com porcentagem maior de THC ainda possuem ressalvas para importação.
Até os dias atuais, a principal forma de acesso ao medicamento é trazê-lo de outros países, o que acaba aumentando os custos do tratamento. “O Brasil atualmente está engatinhando quando falamos de uma legislação para os produtos de Cannabis. Poucas indústrias no Brasil são autorizadas para fabricar este composto e vender no mercado aberto das drogarias e farmácias de manipulação.O alto custo deste medicamento então se deve ao fato de que a principal forma de acesso ainda é via importação”, esclarece Yuri Tejota, advogado e diretor geral da AGAPE (Associação Goiana de Apoio e Pesquisa à Cannabis Medicinal).
De acordo com Vinícius, os valores gastos com o tratamento ainda dependem de alguns fatores. “O custo dependerá da dose diária necessária: quanto maior a demanda, maior o custo”, e pontua que a média mensal de gastos varia entre R$ 250 a R$ 900.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não oferece o medicamento com gratuidade. Mas, é possível conseguir que o SUS arque com o medicamento por meio de ação judicial. “O SUS ainda não fornece CBD sem medida legal que o determine. Assim, para viabilizar o medicamento através do SUS, apenas pela via jurídica. O paciente deve judicializar através de um advogado ou Defensoria Pública”.
Segundo Tejota, o Brasil ainda engatinha nessa questão do fornecimento do fármaco aos pacientes pelo SUS, e em relação à sua legalização e fabricação nacional. “Com base nessa dificuldade surgiram movimentos como as associações de pacientes de Cannabis, que visam justamente produzir o óleo em território nacional e promover a terapia com Cannabis por um custo mais acessível do que o praticado via importação. É um ação que tem dado certo em diversos estados do Brasil, representado pela AGAPE em Goiás, e que tem sido eficaz no tratamento e diminuição dos custos”, reforça o advogado.
Resultados acima dos preconceitos
Para o diretor da AGAPE, muito do preconceito em relação ao uso da planta, mesmo com tantos benefícios já comprovados, se dá pelo contexto histórico, que associa a maconha à prática de crimes e más tendências. “Por volta dos anos 60 a justificativa utilizada era de que a maconha era uma droga que causava alucinações e que levava seus usuários a cometerem crimes de diversos tipos para poder satisfazer a sua necessidade pela droga”.
Mesmo com o uso controlado dos componentes que causam os efeitos psicotrópicos, a mentalidade ainda se propaga no meio social. “As principais dificuldades nas discussões de Cannabis é que primeiramente é necessário desconstruir as informações que foram propagadas por tantos anos e só depois iniciar a discussão sobre a utilização medicinal desta planta e a sua importância nos cuidados do paciente”, conclui Tejota.
Os médicos afirmam que os benefícios são notáveis e os relatos são em sua maioria positivos. O clínico geral explicita que entre seus pacientes, “destacam-se frases do tipo “São umas gotinhas e o efeito é mágico” ou “O canabidiol teve uma resposta maravilhosa” para crianças autistas, “Com uma semana, já não sentia dor nenhuma” para fibromialgia, “A Cannabis medicinal foi um divisor de águas” para dependência em benzodiazepínicos (tarja preta como rivotril), “A Cannabis mudou minha qualidade de vida”, “Consegui resolver os problemas sem desespero e ansiedade”, e por aí vai”.
Para Vinícius, o fator determinante para o sucesso do tratamento com Cannabis medicinal é a individualização e acompanhamento médico constante. “Claro que os resultados não serão os mesmos para todas as pessoas, e pode acontecer de não funcionar para algumas outras, mas é importantíssima a individualização no tratamento e a experiência do médico no manejo para o sucesso da terapia”, complementa.
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