A caminhoneira Izabel Cristina Gonçalves, 45, temeu que estivesse com a quilometragem de vida alta demais para começar num novo ofício ao se ver desempregada por seis meses, em meados de 2016. Passado um ano, está em cima de um palco à beira do rio Paraná, interpretando uma adaptação de “Dom Quixote de La Mancha”.
Gonçalves faz parte de uma trupe de oito caminhoneiros que rodou o Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil nos últimos nove meses apresentando a peça “Ó Xente! E os Direitos da Gente?”, comédia com ritmo de cordel que foi vista por mais de 10 mil pessoas em postos de beira de estrada.
Na montagem, de 15 minutos, Dom Quixote virou Miguel Cantador, e é acompanhado não por Sancho Pança, mas por Sanches, o Chapa.
De dentro de um caminhão cuja lataria é feita de placas de papelão, ele se comunica por rádio, usando códigos como QRU (que significa “alguma novidade?” no código Q, usado em rádios), com uma central chamada Moinho de Vento.
A dupla enfrenta vilões, personificados por outros caminhoneiros. O primeiro é o trabalho escravo, o segundo é a precariedade do sistema público de saúde, o terceiro é a ignorância. Em cenas de luta que lembram coreografias dos Trapalhões, o herói da BR e seu temeroso assistente vão dando sopapos na cara dos inimigos.
Monstro
No meio da trama, uma criatura com toga preta e a máscara do assassino do filme “Pânico” emerge. É o abuso infantil. O herói aponta para o monstro um celular cênico gigante e diz: “Para salvar uma criança disque 100!”. É o número do Disque Direitos Humanos, para o qual se deve denunciar violações.
“Pra mim, é um orgulho ser mulher aqui. Fazer alguma coisa”, diz Gonçalves.
O outro único personagem feminino do Dom Quixote da BR é interpretado por Leonardo Antonio Rezende Figueiredo, 33, um militar reformado de Teixeira de Freitas (BA). A personagem, bexigas cheias no lugar dos seios, é o alívio cômico do texto, e levanta questões sexuais com a plateia de caminhoneiros.
“Desço e mexo com os homens. É brincando que a gente fala de coisa séria”, diz Figueiredo, que se diz muito feliz por ter conseguido o emprego –ele diz que foram 456 candidatos para três vagas na caravana.
Tamanha concorrência se explica pelo salário: os caminhoneiros ganham uma paga para dirigir, outra para montar e desmontar a estrutura e uma terceira para atuar.
Os mesmos oito caminhoneiros que encenaram o texto montaram o palco e pilotaram sete “test drives” de caminhões de até R$ 400 mil, vendidos ali por um dos patrocinadores da empreitada.
O teatro fez parte da décima edição da Caravana Siga Bem, e teve como parceira a ONU (Organização das Nações Unidas). Uma segunda trupe, com o mesmo número de pilotos-atores, percorreu o Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país.
Somados, os grupos per correram cem cidades de 22 Estados. A jornada de nove meses terminou na semana passada, quando os dois grupos se encontraram no interior de São Paulo.
“No começo até usamos atores profissionais, mas o assunto ficou mais próximo da realidade da estrada quando caminhoneiros subiram ao palco. Mas a gente tem um período de treinamento antes, é claro”, explica o diretor Tito Teijido.
Os atores novatos tiveram mais de um mês para ensaiar juntos, o dobro do esperado. É que verbas do governo federal, que patrocina a caravana junto com a Petrobras e a Merces-Benz, atrasaram e o circo teve de ficar estacionado em São Paulo por mais tempo do que o planejado.
Belas e sujas
“A estrada é o lugar onde você vê as coisas mais bonitas e as mais feias. A gente vê. Sempre viu. E antes a gente não falava. Mas agora a gente fala”, diz o caminhoneiro João Batista, 43, da plateia de Presidente Epitácio, com menos de 50 mil habitantes.
O maior orgulho da cidade, que comemorava 68 anos de emancipação quando a trupe estava lá, é ter vencido um concurso de pôr-do-sol mais belo do Brasil promovido pelo programa “Fantástico”, da Globo, em 2014.
Depois da peça, os atores descem para a plateia e fazem uma ciranda. Entram em seguida atrações musicais locais, como a Orquestra de Flautas Encantadoras da Paz ou a dupla sertaneja Gyan & Junior. Há ainda um spa com corte de cabelo e cadeira de massagem, aferição da pressão arterial e palestras sobre DSTs.
Enquanto o circo era levantado pelos mesmos caminhoneiros que até minutos antes estavam no palco, um dos donos do posto onde a peça foi montada comenta com a produção sobre a beleza das profissionais que panfletam.
“Essa aí é feia demais. Da próxima vez deixa que eu escolho as meninas aqui na cidade.” A luta por direitos humanos e igualdade de gênero parece ainda ter muita BR para rodar. (Folhapress)
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