Com o assunto ainda em alta, por conta da repente morte de Karol Eller, que supostamente passava por um processo da chamada “cura gay” em um instituto de uma igreja evangélica de Rio Verde, também denominada de terapia de reversão ou de conversão à heterossexualidade, a discussão leva especialistas a afirmarem que se tratam de práticas de tortura. Por produzirem muitos agravos à saúde, entre eles, a própria construção de ideias suicidas, a afirmação foi dada pelo presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Pedro Paulo Bicalho.
Sem respaldo científico, a prática é vedada por resolução do CFP desde 1999. Isso porque a bissexualidade e a homossexualidade não constituem doença nem desvio. “Nós não podemos usar a moralidade, práticas morais, para dizer que são condutas abominadas. É importante dizer: não é doença, mas também não é desvio. E, por não ser desvio, nenhuma prática que promova a pseudo-reorientação deve permitida no Brasil, exatamente porque produz agravos”, explicou.
Para ele, o Brasil precisa reconhecer a importância de se afirmar a saúde pública como uma saúde laica, considerando que a prática de cura gay ocorre, em grande parte, no contexto de fundamentalismo religioso.
“Hoje isso é um problema de saúde pública: a existência ainda dessas tentativas de aniquilamento das subjetividades de pessoas LGBTQIA+, movidas em grande parte por igrejas fundamentalistas. O Brasil precisa olhar para isso e entender que isso está produzindo agravos sérios na saúde mental da nossa população, em especial, na saúde mental da população LGBTQIA+”, pontuou.
De acordo com o psicólogo, a prática é disseminada pelo país. “Neste momento, enquanto estamos fazendo essa entrevista, existe muita gente que está experimentando formas de cárceres para ter sua orientação sexual revertida. Existem centenas de Karol Eller por aí sofrendo agravos, tortura psicológica, processos de aprisionamento, pelo simples motivo que se considera que a orientação delas é uma orientação errada. Não é um caso isolado, infelizmente”, ressaltou.
Bicalho se referiu ao caso da bolsonarista Karol Eller, encontrada morta no dia 12 de outubro aos 36 anos. O caso foi registrado pela Polícia Civil como suicídio consumado. Eller teria sido submetida a uma “cura gay” na igreja Assembleia de Deus de Rio Verde, em Goiás.
Neste sentido, até mesmo a deputada federal Erika Hilton (PSol-SP) apresentou um projeto de lei para que a “cura gay” seja equiparada ao crime de tortura. Se aprovada, a prática será considerada um crime inafiançável, com pena de reclusão de dois a oito anos. “Pessoas LGBTQIA+ não estão doentes. E um suposto profissional da saúde mental ou liderança religiosa que diz ser capaz de mudar a orientação sexual de alguém na verdade só é capaz de realizar um espancamento psicológico até que a vítima negue à si mesma”, justificou a parlamentar.
Movimento conservador
A cientista política Laira Tenca aponta que o país tem um contexto de crescimento do movimento conservador no âmbito político, ao mesmo tempo em que há uma maior presença da religião evangélica na vida social da população brasileira. Esse cenário conflita com uma melhoria e garantia de direitos para a população LGBTQIA+.
“As pessoas LGBTs estão inseridas nesse Brasil, que passa, por um lado, por um avanço de políticas públicas para essa população, mas, por outro, há um movimento também de maior vocalização de discurso de ódio, transformando essas pessoas em vítimas no fim das contas ali, um questionamento da identidade e da existência dessas pessoas. Nesse cenário, a organização social está ali, a igreja, o pastor, as famílias bebendo desses discursos, convivendo com esses discursos e outras práticas antigas também”, apontou.
Nos retiros com proposta de conversão sexual, Tenca acrescenta que a homossexualidade e a transexualidade são tratadas como um problema, como um pecado, como uma atitude desviante, e a partir daí a cura gay passa a ser mais conectada com discursos religiosos, não mais com a psicologia. O sofrimento é agravado, segundo ela, porque há uma busca de acolhimento e pertencimento em um espaço que está constantemente questionando a identidade das pessoas LGBTQIA+ e produzindo discursos de ódio.
“Nesse contexto, a pessoa LGBT é induzida a negar uma parte da sua própria identidade. O impacto [na saúde mental] é assustador porque a sexualidade faz parte da vida do indivíduo. Ter essa sexualidade reprimida dessa forma por um discurso religioso e por uma conexão latente entre culpa, erro, equívoco e impossibilidade de existir no mundo é terrível, é muito severo”, disse.
Ela ressalta que o suicídio entre mulheres lésbicas e o lesbocídio cresceu nos últimos anos e que o sofrimento psíquico faz parte da vida dessas pessoas, pelo próprio contexto social e pela dificuldade de existir.
Cura gay e HIV
Pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e sobrevivente de tentativas de cura gay, o psicólogo Héder Bello aponta que as práticas de cura gay têm relação com o momento da pandemia do HIV, na década de 80. Na época, havia o equívoco, principalmente por parte da comunidade mais conservadora, religiosa e fundamentalista, de que o vírus da Aids era um castigo de Deus devido à liberdade sexual ou às sexualidades que não estavam dentro do campo da heterossexualidade. Tal conceito, ele reforça, está completamente fora do âmbito da ciência.
“Os esforços relacionados às práticas de cura gay inicialmente se deram, de forma contemporânea [desde a década de 1980], com a tentativa de reverter a questão do HIV através da ideia equivocada de que homossexuais e a população LGBTQIAP+, através dos seus comportamentos desviantes, produziram a ira de Deus e, como um castigo de Deus, houve então a eclosão do HIV no mundo”, disse o pesquisador.
Bello estuda desde 2011 questões relacionadas às práticas ou tentativas de correção e reversão na orientação sexual e na identidade de gênero. Ele conta que se envolveu com essas pesquisas justamente por ter sido submetido a tais práticas durante 13 anos, dos 14 aos 27 anos de idade.
Houve ainda a tentativa de justificar a aplicação de terapias de conversão distorcendo teorias e técnicas da psicologia. Elas produziam um entendimento de que a heterossexualidade é a única sexualidade possível e que haveria a necessidade de que as pessoas passassem por um processo de ‘correção’.
De acordo com o psicólogo, as práticas de cura gay no Brasil atualmente são muito difusas e muito plurais, sendo difundidas por grupos religiosos, educadores e pessoas que exercem profissões não regulamentadas, como, por exemplo, filosofia clínica, consteladores familiares e coaches.
Técnicas de “conversão”
Em relação às técnicas utilizadas na cura gay, Bello explica que tal lógica aponta que a pessoa só aprende a desejar sexualmente alguém do sexo oposto se ela estiver bem adequada aos papéis de gênero na sociedade. Assim, ela é forçada a gostar de coisas que ela não necessariamente gosta e fazer coisas que não quer.
“Tem orações, jejuns forçados, castigos, torturas físicas e psicológicas. Tem um movimento de isolamento social, tem o encarceramento das pessoas para elas não desejarem sexualmente pessoas do mesmo sexo. E [existe] uma lógica também espiritual nesse sentido porque, se você pede a Deus e você demonstra a Deus o seu sacrifício, Deus vai operar isso por você”, revelou o psicólogo. Ele revela ainda a existência de grupos que dizem promover exorcismo por identificar que a homossexualidade é algo demoníaco.
De acordo com o pesquisador, a comunidade científica – incluindo o Conselho Federal de Psicologia, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e Associação de Psiquiatria Americana – entende que quando pessoas passam por esses programas, práticas e procedimentos da chamada cura gay, se verifica um efeito iatrogênico [reações adversas causadas por tratamento médico] ou efeito negativo.
“Não existe nenhuma comprovação de que as pessoas mudam a sexualidade. Pelo contrário, a sexualidade é algo intrínseco do sujeito, que faz parte da identidade do sujeito. Não é uma opção, não é uma escolha”, disse.
“E essas tentativas de reparação, correção, reversão da orientação sexual e da identidade de gênero através de castigos, torturas psicológicas, trabalhos forçados, jejuns forçados, isolamento, cárcere, internações compulsórias, isolamento da família, geram processos de ansiedade, depressão, transtornos de estresse pós-traumático, transtornos alimentares, automutilação, ideações e tentativas de suicídio”, relatou o pesquisador.
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