São Paulo – Os trabalhadores não devem se preocupar. O governo não está revogando direitos trabalhistas ou previdenciários. As medidas provisórias 664 e 665, que alteraram regras da pensão por morte, seguro-desemprego, abono salarial, seguro-defeso e auxílio-doença, corrigem problemas históricos nas regras de concessão desses benefícios trabalhistas e previdenciários.
Esse discurso positivo sobre as duas MPs até poderia ter partido dos quatro ministros que se reuniram ontem com sindicalistas, que juntos combatem o que chamam de perda de direitos. Mas não foi. A avaliação é de especialistas e pesquisadores no assunto. “O que as centrais sindicais estão chamando de direitos não passam de distorções no sistema previdenciário que felizmente começam a ser corrigidas”, afirma a procuradora do Ministério Público Federal em São Paulo e especialista em Direito Previdenciário, Zelia Pierdoná.
O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcelo Abi-Ramia Caetano, usa a expressão “medidas moralizadoras” ao se referir às alterações impostas elas MPs. Para quem acredita que as mudanças contrariam o benchmark internacional, Caetano sentencia: “Não há nenhuma jabuticaba brasileira nas medidas que foram anunciadas”, diz.
O estabelecimento de carência para a concessão da pensão por morte, por exemplo, é realidade em muitos países. O prazo mínimo de 24 meses é, inclusive, menor do que impõem economias desenvolvidas. Na Alemanha, o segurado precisava ser contribuinte por um mínimo de cinco anos. Na Espanha, até 15 anos poderiam ser exigidos.
Na Suécia, Portugal e no emergente México, três anos. Entre as medidas moralizadoras destacadas pelo especialista está o fim da possibilidade de o cônjuge que assassina o esposo requerer o benefício da pensão por morte. Parece óbvio que a Previdência não teria a obrigação de desembolsar um centavo de pensão por morte para quem matou para se tornar pensionista, certo? Bem, a regra de concessão não dizia isso.
Outra distorção corrigida foi quanto ao seguro-defeso. O benefício é uma assistência financeira temporária concedida ao pescador profissional que exerce sua atividade de forma artesanal. Foi criada para auxiliar o segurado nos períodos em que a pesca é proibida para conservação das espécies. “O seguro-defeso havia sido mal estruturado, porque bastava um atestado de uma associação comunitária para permitir que uma pessoa se apresentasse como pescador profissional e requisitasse o benefício. Dar essa prerrogativa para uma entidade que nem pública é me parece, no mínimo, imprudente”, diz professor de Direito Previdenciário do Mackenzie, Vinicius Pacheco Fluminhan.
Sobre o seguro-desemprego, Zelia concorda com o estabelecimento de um período mínimo de trabalho de 18 meses para a aprovação da primeira concessão. “Alguns países que tenho estudado limitam a concessão desse seguro para que ele não acabe estimulando indiretamente o desemprego”, diz a especialista. Ela argumenta que as proteções sociais ao trabalhador têm de ser adequadas para proteger o indivíduo em vez de estimulá-lo a depender de um sistema de bem-estar social.
Zelia afirma que os sindicalistas deveriam entender que o “sistema previdenciário precisa de ajustes para oferecer proteção aos seus segurados hoje e amanhã”. “Ninguém pode ser irresponsável a ponto de defender condições que simplesmente inviabilizam a proteção dos segurados no futuro”, diz a especialista.
A quem argumenta que o problema não eram as regras, mas a falta de fiscalização que torna o sistema permeável a fraudes, a procuradora do MPF chama de “irresponsável”. Afirma que não há como a “máquina administrativa” fazer uma fiscalização ampla e efetiva de todos os processos que envolvem os quase 64 milhões de pessoas socialmente protegidas, número que consta na PNAD do IBGE. “Quem diz que basta aumentar a fiscalização não entende o tamanho do Brasil”, diz a procuradora do Ministério Público.
Em um ponto, os especialistas convergem ao discurso dos sindicalistas. A correção nas distorções nesses benefícios sociais e os ajustes feitos com viés fiscal necessitavam uma discussão mais ampla e a força de lei. Caetano, do Ipea, argumenta que o foro mais adequado para esse tema é o Congresso Nacional. “Muitos detalhes ficam de fora pela falta de um debate mais amplo”, diz Caetano. “A medida provisória deve ser usada em casos de calamidade que necessitam ser solucionados em grau de urgência. Não me parece que é o caso”, diz Fluminhan, professor do Mackenzie.
Para Zelia, Caetano e Fluminhan, as mudanças trazidas pelas MPs poderiam abrir uma discussão mais ampla sobre outros ajustes. Um deles, na avaliação de Zelia, é a criação de um limite mais rigoroso ao valor do auxílio-doença assim como à forma de cálculo do benefício. “Como o cálculo se baseia na média das últimas contribuições, afastar-se alegando doença vale mais a pena para uma pessoa que ganhava R$ 2 mil no antigo emprego que agora tem um salário de R$ 1 mil”, diz.
Fluminhan e Caetano citam a necessidade de criar uma idade mínima para a aposentadoria. “A regra que vigora hoje foi criada há mais de 50 anos quando a expectativa de vida era muito menor”, diz Fluminhan. O fator previdenciário, que tem como função inibir a aposentadoria considerada precoce, não foi suficiente para isso, dizem. “O ideal é estimular a aposentadoria mais tardia, mas não acredito que o governo coloque esse assunto em pauta”, diz o pesquisador do Ipea.
Caetano salienta que as MPs deixaram de fora Estados, municípios e militares. “As medidas afetaram apenas os trabalhadores privados (ligados ao Regime Geral de Previdência Social) e servidores federais. Serão necessárias mais reformas”, diz o especialista. (Fonte: Estadão Conteúdo)
Leia mais sobre: Economia