05 de setembro de 2024
Opinião
Publicado em • atualizado em 21/03/2022 às 08:03

Vamos voltar ao assunto da guerra?

Bandeira da Ucrânia, presente na embaixada do país no Brasil. Foto: Reprodução Google Maps/Anatoliy Tkach
Bandeira da Ucrânia, presente na embaixada do país no Brasil. Foto: Reprodução Google Maps/Anatoliy Tkach

Vamos voltar ao assunto da guerra? Ela não terminou, e tudo indica que ainda está longe de terminar. Os mísseis nucleares do Putin também não desapareceram, nem desapareceram os da OTAN, o que faz a manutenção desse clima resgatado dos tempos da Guerra Fria. Se você já se acostumou com a guerra, e voltou a se preocupar unicamente com o campeonato goiano, acho bom rever sua posição. Podemos nós, de alguma forma, evitar que essa guerra continue? Podemos evitar conflitos nucleares agora ou no futuro? A resposta a estas perguntas talvez seja um dos motivos pelos quais deixamos a vida levar não só nós mesmos – para lembrar do clássico de Zeca Pagodinho, em que nada parece tão importante para prender nossa atenção –, mas também a guerra. Este é o terceiro texto que comento sobre o assunto. Convido o leitor a procurar os outros dois, aqui no Jornal Diário de Goiás.

Alguns analistas imaginaram que a guerra seria muito rápida. Essa ideia foi construída por uma leitura da guerra influenciada pela visão russa do conflito, e também pela mídia ocidental nos primeiros dias. Outros chegaram a dizer que os russos seriam recebidos como uma espécie de “libertadores”, e que a invasão poderia gerar até mesmo a queda do governo ucraniano. Mas o desenvolvimento do conflito se mostrou diferente. A rapidez das forças armadas russas não atenderam a expectativa destes analistas. Os russos encontraram forte resistência em várias regiões, ainda mais nas principais cidades.

Hoje já nos encontramos no vigésimo sexto dia do conflito, e o avanço tem se mostrado muito lento. O custo humano já é enorme, estimado em 4 milhões, entre refugiados, mortos e feridos. A questão que se coloca é a tendência ao ataque aos grandes centros urbanos. A tragédia, em termos de custo humanitário, pode ser muito maior. Já vimos ataques a escolas, hospitais e maternidades, dentre outros pontos civis. Em grandes cidades, essas cenas podem aparecer com mais frequência.

Alguns analistas têm criticado a não interferência direta da OTAN no conflito. Penso que temos que lembrar que a Ucrânia não pertence de fato à OTAN (estavam apenas em negociações), e que nenhum dos países pertencentes foi atingido. Até existem negociações rolando, enquanto bombardeios muito pesados atingem seus alvos. Tudo indica que a Ucrânia vai ter que ceder territórios. Um dos principais interesses russos é a inserção na constituição ucraniana o reconhecimento da Criméia como território russo, bem como a região de Donbass; a neutralidade da Ucrânia e sua não entrada nem na OTAN, nem na União Europeia; e a proteção a língua russa falada por boa parte da população, bem como a cultura. São as exigências para a paz.

Daqui alguns anos, quando se abrirem os documentos a serem investigados pelos historiadores, talvez descubramos que a estratégia russa fosse mesmo a conquista paulatina de terreno e consolidação gradual da conquista. Mas, no calor do momento, não é o que parece.

Enquanto Putin discursava em um estádio lotado, para fomentar o nacionalismo russo (e este é um dos seus grandes talentos), Arnold Schwarzeneggerr, ex governador republicano da Califórnia, fazia um vídeo de aproximadamente 10 minutos, questionando a ideia de Putin estar invadindo a Ucrânia para “desnazificá-la”. Schwarzeneggerr, é verdade, possui certo diálogo com os democratas, mas é republicano e faz parte do espectro da direita. Austríaco naturalizado americano, seu pai lutou na segunda guerra mundial contra os nazistas.

No vídeo, ele aponta para o fato de que o presidente da Ucrânia é um judeu, e que teve três tios assassinados pelos nazistas. Sabemos que isso pode significar muito, ou não significar nada, a depender da biografia de Zelensky e da dinâmica do governo ucraniano. De qualquer modo, para ele, a Ucrânia não começou esta guerra. “Nem os nacionalistas ou os nazistas, mas aqueles no poder no Kremlim”, disse ele. Alega também que esta não é uma guerra do “povo russo”, talvez, mesmo que superficialmente, se posicionando contra a russofobia que se instalou em nossos dias em todo o Ocidente.

Como ele pode afirmar isso? Por uma razão simples, segundo a análise do professor Paulo Ghiraldelli: a extrema-direita ucraniana tem um partido, o Partido do Corpo Nacional. Na última eleição obteve apenas 2% dos votos. O próprio batalhão Azov, que se encontra dentro da guarda nacional ucraniana, de extrema direita, é uma força ultranacionalista. Apesar de, até onde se sabe, serem um número relativamente pequeno, em torno de 1500 pessoas, tem grande influência no governo ucraniano. Eles defenderam manifestantes da repressão contra o governo colocado pelos russos no passado, e por isso entraram na guarda nacional. Analistas apontam para o fato de que o batalhão Azov faz diretamente parte do governo ucraniano, tendo dominado o Ministério do Interior.

É importante termos em conta que opinião do Schwarzenegger não foi de um ex-ator, ou de um ex-fisiculturista, mas a opinião política de um ex-governador de um dos principais estados dos Estados Unidos. E fez isso querendo convencer a população russa a desistir da guerra.

Por outro lado, você tem o filósofo comunista Slavoj Zizek, que já foi até candidato à presidência do seu país que, hoje, se encontra no meio da Guerra: a Eslovênia. Zizek publicou um artigo cujo tema central é a unificação da Ucrânia no Project Syndicate(https://www.project-syndicate.org/commentary/europe-unequal-treatment-of-refugees-exposed-by-ukraine-by-slavoj-zizek-2022-03) . No artigo, ele questiona a fala do Putin de que não havia escolha: devido aos mísseis da OTAN, ele teria que fazer a guerra, inevitavelmente, para combater o fascismo ucraniano. O filósofo eslovêno aponta um resgate das ideias de Ivan Ilyin, para ele o ideólogo de uma espécie de versão russa do fascismo. Zizek apontou que as obras dele voltaram a ser impressas e entregues a aparelhos do governo e bases militares. A ideia principal é o apoio ao líder, não simplesmente escolhê-lo ou legitimá-lo. Nesta vertente, o líder é a própria Rússia, e deve ser defendido, acima de tudo.

Zizek também aponta as ideias do filósofo russo Dugin, colocado por setores da direita ocidental como “ideólogo” de Putin. Para este, a verdade é aquilo em que se acredita, não necessariamente uma realidade a qual nós tomamos posse pela inteligência. Assim, para decidir qual verdade deve prevalecer, o caminho é a guerra.

A Rússia, entretanto, já se encontra totalmente isolada do ocidente. Existe um apoio tímido, ainda, de Índia e China, que se encontram no seu primeiro grande desafio como potência mundial. E, depois de alguns oligarcas russos pressionarem o governo por causa das sanções do Ocidente, o discurso de Putin passou a ser de ataque a eles que, antes, eram uma de suas bases de sustentação, dizendo que vivem no exterior, com vidas de grande luxo e diferenciando-os do “verdadeiro povo russo”.

Para alguns analistas, o Putin está caminhando para o seu fim, e não para sua glória. Acredito que a tendência maior seja a continuidade da guerra e a tomada de Kiev a qualquer preço por parte da Rússia. Grande parte da cidade já se retirou, é verdade, mas a perda em termos de infra-estrutura e economia ,por si só, pode ser catastrófica.

A grande questão é que os pontos levantados pela Rússia devem ser realmente negociados, e não podem ser ignorados. Isso é consequência da nova ordem mundial multipolar que se mostra cada vez mais como realidade. Devemos ter em conta o contexto amplo da situação. Boa parte da Europa afirmou aumentar seus gastos militares. A Alemanha mesmo disse oficialmente que vai triplicar. Como disse, tudo indica que a guerra ainda vai se arrastar para abril, maio… Mesmo tendo um contexto imperialista que já vinha se desenvolvendo desde o final do século XIX, a Primeira Guerra Mundial tem como marco de seu início a data de 28 de julho de 1914, exatos 30 dias após o assassinato do arqueduque Francisco Ferdinando da Áustria, herdeiro do império Austro-Húngaro, considerado o estopim para o conflito.

Isso não significa que não tenhamos que intensificar uma campanha internacional pela paz, e pela salvação nacional da Ucrânia. Devemos lembrar que o Putin, bem como todos os líderes das outras potências, dorme com os controles das ogivas nucleares debaixo do travesseiro.

Cristian de Paula Sales Moreira Junior é professor de História e mestre e doutorando em História Política pela UFG.

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