25 de novembro de 2024
Opinião
Publicado em • atualizado em 13/02/2022 às 00:34

Um oceano de informações, coronavírus e o prejuízo de US$ 170 milhões da cerveja Corona

(Foto: Rodolpho Zanardo)
(Foto: Rodolpho Zanardo)

A Cerveja Corona transmite corona-vírus? Uma pesquisa realizada por uma agência norte-americana constatou que 38% dos americanos estão evitando tomar a cerveja por medo de um possível contágio mas um cientista político e pesquisador norte-americano constatou que não é bem assim.

Não faz muitos dias, estava conversando com uns primos no grupo da família (sim, mesmo com alguma divergência aqui e outra acolá, o grupo dos Silveira resistiu à toda essa tormenta dos últimos tempos) e uma prima discordou de mim quando afirmou que não existia desinformação em temos de Google e Redes Sociais. Outro dia, um amigo advogado e super bem estudado disse que só fica mal informado quem quer: “Todo mundo tem acesso à internet no celular. Passou o tempo que a gente precisava de jornal para ficar informado”.

Ora, me parece que há uma constatação no imaginário popular que há nos buscadores de internet, redes sociais e nas plataformas de conhecimento colaborativo como o Wikipedia, sejam maravilhosas fontes de informação. Não é raro alguém querer deslegitimar a imprensa tradicional e questionar suas informações. Dizer que há informação na internet acessível à todos também não é nenhuma mentira, afinal de contas, segundo dados do próprio Wikipédia, existem na plataforma mais de 51 milhões de artigos que vão desde a “quem é Natália Nara, do BBB5” até informações caso você queira se inteirar sobre os conflitos geopolíticos no Iêmen. 

De fato, minha prima e meu amigo advogado não estão errados: tem informação pra caramba na internet. Mas esse mar de conhecimento que a rede nos dá está nos preguiçosos. Mais ainda: ficamos com preguiça de pensar. Ao confiarmos no que a Wikipédia ou o que um youtuber muito articulado está dizendo sobre direito do consumidor, estamos sujeitos a acreditar em algo que não tenha coerência alguma. Sequer chego a falar das famigeradas fakenews, mas pode ser que estejamos de frente à algum comentário ou notícia desatualizada ou fora do contexto correto. Está tudo tão fácil que na maioria das vezes, as pessoas confiam naquilo que mais convém acreditar. Em outras palavras: se na minha visão faz sentido, eu passo para frente, mesmo que não tenha o menor sentido.

O mar de informações e a facilidade em compartilharmos nossas opiniões, divergentes e conflitantes, consensuais ou consoantes, também é um prato cheio para criar as mais absurdas teorias de conspiração e narrativas míopes e desconexas. Uma das vítimas do coronavírus, pauta que tem assustado à todos e que tem se alastrado aos quatro cantos foi a Cerveja Corona. 

“Cerveja Corona transmite coronavírus?”

Desde que deu seu boom e o assunto começou a preocupar a população, as buscas relacionando cerveja e vírus aumentaram vertiginosamente segundo o Google Trends, serviço da plataforma norte-americana que quantifica os termos procurados pelos usuários. De 18 a 26 de janeiro, a pesquisa pelo termo ‘corona beer virus’ (‘corona cerveja vírus’, em português) teve um salto de 2.300%. ‘Beer virus’ (‘cerveja vírus’) saltou 744% e ‘beer coronavirus’ (‘cerveja coronavírus’) aumentou em 3.233%. Seja como for, o vírus tem refletido as vendas da cerveja na China. Segundo a Ambev, “o impacto causado do vírus COVID-19 […] continua a evoluir. O surto levou a um declínio significativo da demanda na China”. Um prejuízo estimado em US$ 170 milhões (cerca de R$ 776 milhões) no mercado chinês. 

Lido num primeiro momento e fazendo as relações com os números podemos relacionar que os chineses estão deixando de comprar porque estão relacionando o contágio da cerveja ao vírus. Não é bem assim: houve redução e prejuízos entre todas as cervejarias na China, porque simplesmente as pessoas não estão saindo e consumindo produtos antes do surto.

Nos Estados Unidos, uma pesquisa divulgada por diversos veículos de comunicação como a CNN e o New York Post e até a Revista QG, da Globo aqui no Brasil dizia que “38% dos americanos” estavam evitando beber a cerveja Corona por medo de contrair o coronavírus. O cientista político Yascha Mounk se debruçou em um longo artigo para a revista norte-americana The Atlantic e esmiuçou a pesquisa feita pela 5WPR, uma agência especializada em relações públicas dos Estados Unidos. Acontece que Yascha relata que pediu para a Agência o resultado das respostas de cada pergunta e não recebeu o relatório detalhado de modo que perguntas específicas como por exemplo, “Corona está relacionado ao coronavírus?” e “À luz do coronavírus, você planeja parar de beber Corona?”. Em sua análise ele chega a uma possível tese que de fato, os norte-americanos sabem a diferença entre uma cerveja e um eventual contágio e não são tão ignorantes à ponto de relacionarem uma coisa com a outra.

Agência de ‘desinformação’?

A Agência se aproveitou de uma pauta para tentar criar uma áurea alarmante e ao mesmo tempo tentando enganar o público que 38% dos norte-americanos consideram que o vírus pode ser transmitido por meio de uma cerveja e os meios de comunicação deixaram-se vencer pela pesquisa e ao publicizá-la, deu lá, certo grau de credibilidade e se tornam segundo, Yascha, “ferramentas involuntárias de uma campanha inteligente de desinformação”.

É contraditório e ao mesmo tempo fascinante a forma como informação e desinformação estejam tão próximas mas suas portas levando a caminhos distintos. Fosse eu um pesquisador do assunto, dedicaria uma vida em busca de uma solução sobre conciliar redes sociais e todas as informações que a gente recebe no combo. Como profissional da comunicação e leitor assíduo de artigos, textos e obras sobre tecnologia, ciências políticas e mente humana, me sinto motivado a alertar para que o uso de todo esse arsenal digital possa ser feito com cuidado e de modo preventivo. Somos responsáveis por aquilo que clicamos em compartilhar em nosso grupo da família. Checar o fato, nunca é demais. E em tempos atuais, às vezes complicado. Yacha Mounk está até agora aguardando a transparência detalhada dos números com relação à pesquisa publicada pela 5WPR. Ele questionou os jornalistas que divulgaram a pesquisa se também tentaram checar as informações antes de sua publicação e também está no vácuo. 

Em 1926, HP Lovecraf escreveu “O Chamado de Cthulhu”, uma obra-prima do horror que serviu de base para a cultura pop se esmiuçar em jogos de RPG: “A coisa mais misericordiosa do mundo é, segundo penso, a incapacidade da mente humana em correlacionar tudo o que sabe. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a mares negros de infinitude, e não fomos feitos para ir longe. As ciências, cada uma empenhando-se em seus próprios desígnios, até agora nos prejudicaram pouco; mas um dia a compreensão ampla de todo esse conhecimento dissociado revelará terríveis panoramas da realidade e do pavoroso lugar que nela ocupamos.” 

Domingos Ketelbey é jornalista, assessor de imprensa e pai recém-nascido.