05 de dezembro de 2025
Opinião
Publicado em • atualizado em 08/10/2025 às 18:46

Tarifa Zero: Entre o sonho da inclusão e o risco do colapso

Para o cidadão das grandes cidades brasileiras, o som do despertador antes do amanhecer é frequentemente seguido pela maratona diária do transporte coletivo. É uma realidade de pontos de ônibus cheios, de planejamento para chegar a tempo e do custo da passagem pesando no orçamento familiar. Diante deste cenário, a proposta de “tarifa zero” para o transporte, ventilada pelo Governo Federal, surge como uma melodia sedutora, um verdadeiro canto de sereia prometendo o fim de uma das principais despesas do trabalhador e o acesso irrestrito à cidade.

Contudo, antes de nos deixarmos levar por essa canção utópica, é crucial analisar a partitura completa, que revela uma composição complexa, repleta de desafios fiscais e riscos operacionais. A própria discussão em Brasília, tratada como “incipiente” e já enfrentando forte “resistência na área econômica”, serve como um poderoso alerta: o buraco desta proposta é, de fato, muito mais fundo.

Para compreender a magnitude do salto para a gratuidade total, é preciso primeiro entender o chão em que pisamos. A Região Metropolitana de Goiânia (RMG) não é alheia à intervenção pública no transporte. Pelo contrário, ela é um caso exemplar de como o poder público já arca com uma parcela significativa dos custos para evitar o colapso do sistema e o repasse total dos aumentos ao usuário. Desde 2019, a população paga os mesmos R$ 4,30 pela passagem, um valor congelado que desafia a inflação galopante que impactou o preço do diesel, dos pneus, dos salários e da manutenção da frota. Esse congelamento não é mágica; é o resultado de um robusto e contínuo aporte financeiro do Governo de Goiás e das prefeituras consorciadas, um esforço fiscal que já consome milhões de reais dos cofres públicos anualmente. Portanto, a discussão em Goiânia não parte do zero. Ela parte de um modelo que já reconhece o transporte como serviço essencial e que, por isso, já é pesadamente subsidiado.

É aqui que o debate nacional se choca com a realidade. Se a equipe econômica da União, que gerencia um orçamento trilionário, expressa sérias preocupas com o impacto da tarifa zero no arcabouço fiscal do país, qual seria a consequência para os orçamentos estaduais e municipais? A expressão “o buraco é fundo”, usada para descrever o desafio financeiro nacional, se aplica com ainda mais força à nossa realidade. Implementar a tarifa zero na RMG significaria encontrar uma fonte de receita permanente para cobrir não apenas o valor da passagem, mas 100% dos custos operacionais. De onde viria esse dinheiro? A conta chegaria, invariavelmente, para o mesmo cidadão, seja através do aumento de impostos como IPTU e ICMS, seja pela redução de investimentos em outras áreas críticas. Estaríamos dispostos a ver menos recursos na construção de creches, na manutenção de unidades de saúde, no asfalto de nossas ruas ou na segurança pública para bancar a gratuidade total do transporte? Este é o trade-off real e inevitável que a proposta impõe.

Diante desse dilema, Goiânia tem, talvez sem o devido reconhecimento, trilhado um caminho mais inteligente e sustentável: o da equidade em vez da igualdade. Há uma diferença fundamental entre os dois conceitos. A igualdade, representada pela tarifa zero, seria dar o mesmo benefício a todos: o empresário que usa o ônibus esporadicamente e o trabalhador que depende dele para sobreviver. Já a equidade, o princípio por trás de programas como o Passe Livre do Trabalhador, o Bilhete Único Metropolitano e o Cartão Família, é oferecer suporte direcionado a quem realmente precisa. Essas políticas são bisturis sociais que aplicam o subsídio público de forma precisa, garantindo que a faxineira, o auxiliar de serviços gerais e o estudante de baixa renda tenham seu direito de ir e vir assegurado, aliviando o peso no orçamento de quem mais sente. Este modelo, além de socialmente mais justo, é fiscalmente mais responsável, pois otimiza o uso do dinheiro público.

Finalmente, há o risco silencioso, mas catastrófico, do colapso da qualidade. A gratuidade universal levaria, de um dia para o outro, a uma explosão de demanda. A rede, que já opera no limite em horários de pico, simplesmente não suportaria. Sem um plano paralelo de investimentos massivos para a renovação e ampliação da frota, contratação de milhares de novos motoristas e funcionários e otimização de rotas, a experiência do passageiro seria drasticamente degradada. O resultado seria ônibus superlotados em um nível nunca visto, tempos de espera maiores e uma queda brutal na confiabilidade. O serviço se tornaria tão precário que poderia afastar até mesmo quem não paga por ele, um paradoxo que selaria o fracasso da política.

O debate nacional é importante, mas a resistência e os desafios expostos servem de lição. Para Região Metropolitana de Goiânia, a resposta não parece estar em uma utopia fiscalmente perigosa, mas no aprimoramento do que já está sendo feito. Fortalecer e expandir o modelo de subsídios focados na equidade é o caminho mais seguro e eficaz. O objetivo final não deve ser apenas uma passagem gratuita, mas um sistema de transporte público de alta qualidade, confiável e verdadeiramente acessível, que funcione como pilar para uma cidade mais justa e funcional. O progresso está na responsabilidade e na gestão inteligente, não no canto da sereia da gratuidade irrestrita.

Miguel Angelo Pricinote

Miguel Angelo Pricinote é geógrafo, mestre em transportes que atualmente exerce o cargo no Governo do Estado de Goiás como Subsecretário de Políticas para Cidades e Transporte. Ele é reconhecido por sua crença em valores cristãos e libertários, bem como por suas iniciativas na área de descarbonização e modernização do transporte público em Goiás.

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