09 de agosto de 2024
Opinião
Publicado em • atualizado em 28/02/2022 às 18:21

Russia e Ucrânia: geopolítica não é romance; um balanço sobre a crise no leste europeu

Apesar de não termos um vínculo histórico com a região, hoje o que se tem de especialistas nas relações Rússia-Ucrânia, no Brasil, é impressionante. Sendo assim, também vou fazer minha parte, e dar os meus pitacos.

Putin está em Kiev. Minha intuição é a de que ele vai querer derrubar o governo, instalar outro que seja pró Rússia, e depois retirar as tropas. Manter uma ocupação envolve gastos, vidas e riscos. Uma ocupação poderia criar um novo Afeganistão: não é bom se estabelecer à força porque se fomenta um nacionalismo violento como reação das pessoas que habitam o lugar. Me parece que objetivo do Putin é o inverso: causar uma opinião pública nacionalista russa, convertendo setores mais conservadores da população, com vistas às próximas eleições.

Estamos fartos de ver lideranças autoritárias, ditadores, ou mesmo republicanos que vencem eleições de forma limpa como nos Estados Unidos(não é o caso do Putin), fomentar um inimigo externo. Causar uma guerra, entretanto, é uma outra coisa. Envolve o princípio universal do direito internacional. E pra quê?

O comunismo acabou, a URSS se desintegrou, e os seus países satélites foram se integrando à OTAN, mas não com o objetivo de ameaçar a Rússia, especificamente, e sim como uma forma de se integrar e se articular com a Europa.

Embora em texto anterior, datado de 26 de janeiro, eu tenha levantado a bola de que a Rússia também tem lá os seus motivos, e que a geopolítica não se resume a mocinhos e bandidos – a geopolítica não é tão óbvia; não se trata de bons e maus, nem mesmo de esquerda e direita – penso que o direito internacional deve ser guardado, e a integridade territorial dos Estados deve ser respeitada.

A Rússia, entretanto, não pensou assim. Invadiu por terra, céu e mar um território que oficialmente a comunidade internacional ainda reconhece como pertencente à Ucrânia. Embora também haja este outro aspecto, o da expansão rumo ao leste da OTAN, com suas motivações próprias, fator que gera também grandes preocupações por parte da Rússia.

Isto porque, com o fim do socialismo chamado real, simbolizado pela queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, desaparece o Pacto de Varsóvia, mas a OTAN permanece. Uma entidade justificava a outra, tecnicamente. E não só permanece como começa a ocupar uma área antes pertencente à antiga União Soviética, a partir de sua desintegração. É no mínimo estranha essa expansão: o inimigo não é mais o socialismo, mas a Rússia em si, independente de socialismo, embora também tenha sido usada no Iraque, no Afeganistão, entre outros. A aparência é de que a OTAN está sempre à procura de um inimigo.

A Rússia, neste sentido, sempre foi objeto de cobiça e de invasão, até mesmo pelo mistério, pela diferença, pela alteridade. Representa um enigma para o mundo Ocidental, e nunca foi totalmente aceita por ele. Você tem uma história para tê-la como inimigo: foram invadidos duas vezes pela Alemanha no século XX; por Napoleão no XIX; e podemos voltar mesmo até os cavaleiros templários… Além de que é o maior território do mundo, com possibilidades de recursos inesgotáveis (até hoje não se sabe ao certo o que se pode explorar de regiões como a Sibéria, por exemplo).

Há também o fator de que o complexo industrial-militar precisa de um inimigo para se manter operante e continuar produzindo, independente da tendência de queda das taxas de lucro. É o que nos lembra Isaac Deutscher (1907-1967), escritor polonês. O capitalismo em condições normais de temperatura e pressão, precisa que suas mercadorias sejam consumidas para que se produzam outras, alimentando o ciclo. Em termos militares, porém, se produz para acumular mercadorias que, espera-se, não sejam consumidas: mísseis, armas nucleares, dentre outras. O objetivo é deixar um país sempre à frente do outro, com um arsenal maior, intimidando-se mutuamente e, enquanto isso, o motor do capital continua operando.

A Rússia, por outro lado, não tem sido uma potência expansionista. Ela tem o interesse de se defender, aparentemente. Podemos discutir os motivos pelos quais se quer defender, e a forma como se defende, mas não o fato em si. E isso não tem nada a ver com o comunismo, mas com uma perspectiva conservadora de entendimento do chamado Império Russo, que perdeu território depois da primeira guerra mundial no tratado de Brest-litovsk, depois recuperou no fim da segunda guerra mundial, e voltou a perder com a desintegração da URSS.

A Rússia hoje é um país capitalista. Um capitalismo peculiar, com oligarquias, mas um país capitalista com muito investimento estrangeiro. Com as sanções europeias à Rússia, esta se vê cada vez mais lançada a abraçar relações com a China. O conflito entre EUA e Rússia se tornou um conflito entre EUA e Eurásia. A realidade hoje é a de um mundo multipolar, em contraposição aos mundos bipolares da Guerra Fria e unipolar da pós URSS.

Existe também uma estranheza em transformar a Ucrânia em aliado. Quais são os interesses da OTAN em manter uma relação com a Ucrânia? Fica aí o questionamento…

De qualquer forma, nada disso justifica a violação da integridade territorial. Isso sempre é criticável, indiscutivelmente. Mas a situação como um todo é muito complexa, e deve ser levada em conta: a expansão para o leste da OTAN contrariando até mesmo a doutrina dos estadunidenses. E, neste sentido, a posição do governo brasileiro neste conflito, expressa em uma nota do Itamaraty, e no discurso do embaixador na ONU, está basicamente correta, penso. Curiosamente, foi parecida com a posição chinesa, muito cautelosa. Defende o direito à segurança nacional, mas também o direito de autodeterminação dos povos. Foram notas moderadas.

Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

Cristian de Paula, Doutorando em História pela UFG, para o Jornal Diário de Goiás.

Professor de História, mestre e doutorando em História Política pela UFG

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