Por Caius Brandão
Depois do Mensalão, o escândalo Cachoeira mais uma vez descortina os bastidores da política partidária brasileira. Esta realidade desnudada é o que se tem em comum entre os dois lados do debate acerca do voto nulo, a favor ou contra. Mas nem sempre, realidades reveladas traduzem-se em realidades estudadas e compreendidas. Entretanto, o fato continua existindo e produzindo seus efeitos, mesmo que alheio à percepção crítica dos envolvidos. Antes de nos digladiarmos em entorno do sim ou do não ao voto nulo, sugiro que voltemos nossas atenções ao problema que temos em comum: a falência da democracia representativa no Brasil.
O modelo teórico de democracia adotado pelo Estado brasileiro pressupõe a participação indireta dos cidadãos no poder civil, por meio da representação outorgada pelo voto aos políticos profissionais. Isso significa que delegamos aos partidos políticos o nosso poder de legislar, bem como, o de fiscalizar o Executivo. Esse modelo de poder civil pretende contemplar os anseios modernos de liberdade, o que significa construir um Estado que administre a coisa pública, enquanto seus cidadãos possam cuidar, sem interferências, de suas vidas privadas. Assim, teoricamente, o cidadão brasileiro é livre porque pode cuidar de si e de sua família todos os dias de suas vidas, com exceção dos domingos de eleições, quando o mínimo de participação na administração da coisa pública é exigido pelo Estado. Ele o exige porque a legitimidade do poder delegado pelo povo aos políticos profissionais está fundamentada nesta participação mínima, isto é, no voto.
Além da ‘participação’, podemos também buscar compreender este modelo pela via da ‘representação’ exercida pelos políticos profissionais. Na teoria, os partidos políticos deveriam representar as vontades e ideais de parcelas da população. As parcelas mais numerosas, quando garantidas por eleições livres e universais, devem governar e legislar por meio de seus representantes, ou seja, os políticos dos partidos mais votados. A representação é como uma procuração que o eleitor passa ao seu candidato, que terá o poder de fazer com que o Estado faça valer a sua vontade e os seus ideais voltados ao bem comum. Esse ‘contrato’ é materializado pelo voto. Sem o voto, não há contrato e sem o contrato não há representação. Logo, caso um político assuma o poder sem o consentimento da maioria, este poder será ilegítimo e não deve ser respeitado.
Devemos criticar esse modelo de democracia ao passarmos do plano teórico ao prático, porque a realidade nua e crua é a de que, na prática, conseguimos corromper o modelo teórico em seus alicerces com as crises de participação e representação. O cidadão brasileiro sabe que participa muito pouco do cuidado com o bem público e que os partidos políticos não representam as suas vontades e ideais. São os mais ricos, aquele 1% muito bem observado pelo Occupy Wall Street, em suas respectivas jurisdições, que determinam a vontade e os ideais dos chamados ‘representantes do povo’. O brasileiro reconhece esses dois fenômenos de crise, mas por não considerar sequer a possibilidade de um modelo de poder civil diferente deste único que conhece, ele se vê então aprisionado num círculo vicioso produzido pelas crises de participação e representação, que se retroalimentam e evoluem numa espiral cada vez mais ampla.
A força do capital na política partidária de todo o Brasil não é uma mais novidade para o povo. Em Goiás, onde a máfia alastra seus tentáculos entre os mais ricos e se apodera parcialmente do aparelho de Estado, o governador é investigado por indícios de ter se beneficiado pessoalmente do esquema mafioso. Inúmeros Secretários e auxiliares de primeiro escalão de governo são acusados de instalarem uma rede criminosa no governo para beneficiar contraventores de jogos ilegais e empresas interessadas em fraudar licitações. Também existem denúncias de que um esquadrão da morte teria sido implantado pela Polícia Militar, que seria responsável por homicídios e desaparecimentos. O cenário de fragilização das instituições democráticas é estarrecedor. A maior parte dos Goianos assiste inerte aos espetáculos de denúncias contra os seus agentes públicos.
Ademais, a suposta rede montada pelo mafioso atingiu de cheio o Ministério Público de Goiás. O poder Judiciário goiano tem hoje um procurador investigado por suspeita de pertencer à quadrilha do mafioso. Trata-se de um ex-senador da República, cassado pelo Congresso Nacional por seu envolvimento no esquema, o qual se alastrou por todos os três poderes constituídos, inclusive o legislativo goiano. A atual inércia dos políticos goianos para investigar o Executivo estadual revela cumplicidade e má-fé. Vários deputados e vereadores de Goiás são conhecidos como aliados políticos do ‘empresário’ mafioso. Alguns deles são investigados.
A possibilidade de uma rede criminosa ter se instalado no aparelho do governo do Estado de Goiás, só existe porque o povo goiano não participa, ou participa muito pouco, da administração do bem público, mas também porque os seus ‘representantes’, mesmo que eleitos democraticamente, na verdade, nunca o representaram politicamente, quando teriam inúmeras vezes quebrado o contrato que fizeram com os cidadãos goianos para fazer negociatas com mafiosos.
Mas o que fazer diante de uma crise em que o cidadão, já posto distante do poder de decidir e fiscalizar, não se interessa mais pela política e perdeu significativamente a confiança que tinha nos partidos que regem a política partidária no país?
O Voto Nulo e a Constituição Brasileira
Os ideais republicanos que norteiam a nossa Constituição garantem aos cidadãos brasileiros o direito à livre expressão nos processos de decisões democráticas. Eles nos garantem o direito de expressar a nossa vontade livremente no sufrágio universal. Este direito é tão fundamental que a sua proibição corrompe os princípios de igualdade e liberdade, ferindo a dignidade do homem. Justamente por ser um direito fundamental ao ser humano, a livre expressão política está integralmente garantida por nossa Constituição. Entretanto, em flagrante desrespeito a este direito, por força de uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os votos anulados pelos cidadãos são invalidados pelos tribunais eleitorais do país. Na interpretação dos Ministros do Supremo, o voto nulo é ‘apolítico’ e deve ser descartado na contagem dos votos.
Quando excelentíssimos Ministros decidem que a vontade de um cidadão que vota nulo é apolítica e decidem também descartá-la, eles desrespeitam o direito fundamental à livre expressão e nos aprisionam nesse sistema político viciado, corrompido e ineficaz. Poderíamos até argumentar que quem vota nulo no Brasil, via de regra, são os politicamente mais engajados. Mas, antes, havemos de criticar a atitude preconceituosa dos Ministros do STE, em relação aos eleitores que votam nulo. Apolítico seria um ato desprovido de significado político. Deixar de reconhecer o significado do voto nulo como político é um disparate. Se algum cidadão não se sentir representado por nenhum dos partidos políticos em determinado pleito, ou se ele está insatisfeito com o modelo do sistema político do país, por qual razão a sua decisão de não compactuar com aquilo que ele não concorda e até abomina poderia ser interpretada como apolítica? Dessa forma, o TSE comete uma violência ao direito dos brasileiros de se expressarem livremente, assim como de serem ouvidos e respeitados pelos tribunais eleitorais. Quando a maioria do eleitorado não concorda ou não confia no conjunto de opções apresentadas pelos partidos em determinado pleito, o TSE deveria promover a realização de novas eleições. Ao invés disso, enquanto cala alguns eleitores, o TSE também obriga a todos a assinar uma procuração (o voto) que legitima o poder de representação a ser exercido pelos partidos, os quais, como já sabemos, não representam de fato o eleitor.
Entretanto, a nossa liberdade política não pode ser reduzida pelas decisões de um tribunal que não é superior à própria Constituição. Exatamente por isso, a defesa pelo direito de livre expressão política deve ser radicalizada no Brasil, para por fim às remanescentes limitações institucionais aos nossos direitos fundamentais.
O Voto Nulo e as Eleições Municipais
O voto nulo, no Brasil, é polissêmico. Ele compreende uma enorme variedade de significados, revelados por opiniões, crenças, valores e ideais. Sem nenhuma aparente unidade em torno de alguma coloração ideológica, o voto nulo é justificado de muitas maneiras distintas. As justificativas podem ser desde as mais libertárias – aqueles que reivindicam o poder de legislar sem representantes, até as mais conservadoras, como quem desejasse que as Forças Armadas assumissem o poder novamente. O que prova que ele, o voto nulo, é apenas um voto de protesto com múltiplos significados e justificativas.
Apesar de não ser um voto ‘válido’ e não ensejar nenhuma unidade ideológica, o voto nulo chega a incomodar bastante a grande maioria dos candidatos, em Goiânia. Por exemplo, uma parcela significativa da população afirma que irá votar nulo ou branco (16%), de acordo com pesquisa divulgada em setembro de 2012. O candidato em segundo lugar tem somente 11% das intenções de voto. Na atual conjuntura, se não fosse o voto nulo, certamente teríamos segundo turno na Capital, mas não é esse o caminho que as pesquisas sinalizam. Válido ou não, constitucional ou não, fato é que o voto nulo já tem força suficiente para influenciar o resultado da nossa eleição para prefeito. Mesmo considerada apolítica pelos Ministros do TSE, a vontade de 16% dos eleitores goianienses já mostra a sua força política. Se não for apenas por seus mais diversos significados, o voto nulo demonstrará a sua fortaleza política pelos números.
Talvez possamos aproveitar esse fenômeno em Goiânia para justificar uma reflexão crítica sobre a possibilidade de mudanças estruturais em nosso sistema político. O voto nulo já tem por mérito a capacidade de colocar em cheque o status quo dos processos eleitorais. Cada voto anulado pelo eleitor é de fato e de direito, um voto a menos para a garantia da legitimidade dos políticos empossados pelos tribunais. Se mais de 50% votasse nulo, não seria o fim do mundo e Goiânia não acabaria. Mas se o TSE insistisse em manter a sua decisão de desconsiderar a vontade política de uma maioria de cidadãos que teriam votado nulo, e em seguida empossasse algum candidato ao cargo executivo sem a maioria dos votos, ele estaria criando um enorme impasse político que poderia levar o povo de Goiânia às ruas novamente. Esse é um cenário perfeitamente possível e repleto de riscos e oportunidades.
Bom debate!
Há pouco tempo, me interessei pela questão do voto nulo e, antes de tomar publicamente uma posição clara e definida sobre o assunto, resolvi estudar um pouco esse tema. Meu principal recurso foi a internet, particularmente, o Facebook, onde cheguei a criar uma enquete em minha página sobre argumentos contra e favoráveis ao voto nulo. A vocês que gentilmente aceitaram o meu convite e me auxiliaram a pensar sobre essa forma de protesto, eu dedico esse trabalho que tenta dividir um pouco do que eu aprendi com o seu apoio. Muito obrigado o todos vocês e bom debate!