Na democracia constitucionalizada mais antiga do mundo, que é a dos Estados Unidos da América, a relação entre poder civil e poder militar é algo bem consolidado: o primeiro manda o segundo obedece. Em qualquer democracia bem estabelecida no mundo, o poder civil é o legítimo comandante do poder militar e isso se deve a um único fato: militares têm armas e armas calam o diálogo. Democracias sobrevivem de diálogo. Civis recebem o voto popular (ato mais simbólico da democracia), militares (policiais) cuidam da segurança pública e (forças armadas) protegem as fronteiras de ameaças externas.
Apesar de nossas tentativas de nos diferenciar culturalmente e politicamente de nossos “hermanos”, infelizmente o Brasil carrega a pecha de ser mais uma das Republicas latino-americanas com baixa rigidez institucional, assolada por mais de um século de golpes de natureza militar. Don Pedro II, Washington Luis, Getúlio Vargas, João Goulart, todos foram presidentes depostos por acordos de gabinetes entre homens fardados que não receberam delegação para realizarem atos que violam o voto popular. Mesmo assim, arrogantemente, se valeram da confiança do Estado em fornecer a eles o monopólio legítimo do uso da força, para usá-lo contra seus chefes constituídos, o poder civil, bem como solapar a democracia, impondo longos períodos de autoritarismo no país.
É preciso destacar que a chamada “doutrina de separação entre os poderes” é aquela que define as competências e divisão das atribuições do Estado, organizando o poder em três, pois, como define Montesquieu, “Todo homem que acumula poder, tende a abusar dele”. Esta doutrina define que cabe ao Legislativo, criar leis e fiscalizar, ao Judiciário interpretar as leis e julgar com base na constitucionalidade aplicada a casos concretos e ao Executivo, cabe a gestão do governo e do Estado e é aí que entram as forças armadas. Elas não são, e nem nunca foram, constitucionalmente, um poder autônomo. Estão submetidas ao poder civil, como braço armado do Estado para a proteção do território. Elas nunca foram autorizadas a deixarem os quarteis, salvo em casos de guerras. E no caso das policias militares, nunca foram autorizadas a se manifestarem politicamente acerca de nenhum tema. Mas mesmo assim, como supramencionado, atuaram e vêm atuando politicamente destronando a institucionalidade do país por quatro vezes, fora as ameaças.
Por mais de um século se cultivou no imaginário social que quando há tensões entre os poderes (isso é absolutamente normal dentro da democracia, por vezes pelo fato de haver líderes que adquirem maior poder de agenda e os outros poderes utilizam de seus freio e contra-pesos para balancear e reestabelecer a harmonia), quando os poderes entram em rota de colisão, cabe às forças armadas, intervirem no cenário. Esta é uma das interpretações mais medíocres e preguiçosas que se poderia fazer. No entanto por várias vezes foi utilizada como subterfúgio para que quem não ganhou um voto decidisse em nome de toda a população. É claro, falo de setores golpistas dentro das forças de segurança e armadas, apoiadas, inclusive, por setores civis golpistas.
As forças armadas existem como força de Estado, assegurada nos termos do art. 142 da Constituição Federal, com função de garantia do funcionamento dos poderes, ou seja, garantir a proteção do Estado e de suas instituições. Não há a prerrogativa de intervenção e o motivo, adivinhem só: estamos em um Estado Democrático de DIREITO e nenhum militar da ativa recebeu nenhum voto para decidir em nome de todos. A interpretação forçada de que as Forças Armadas serviriam como a garantidora da democracia, esbarra na neutralidade política que se exige de tais forças (como mencionarei à frente), ademais colide com a doutrina de separação entre os poderes que é aquela que organiza a divisão do poder para evitar o abuso dele.
Apesar disso, recentemente temos assistido militares violando a lei 1688/1980, (editada, inclusive por um presidente ditador militar), em seu art 45° que define que “São proibidas quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores quanto as de caráter reivindicatório ou político”. Esta lei tem o intuito de assegurar a hierarquia dentro das forças, garantindo que as forças cumpram a delegação de seus superiores. Isso esbarra o associativismo das polícias militares, que têm se multiplicado a fim de “defender as demandas da classe”, e que recorrentemente são vistos em manifestações políticas na porta dos parlamentos subnacionais, exigindo demandas da categoria. Isso também esbarra diretamente na manifestação de Pazuello junto ao Presidente Bolsonaro no Rio de Janeiro. Inclusive, quanto ao último, pois há uma clara violação ao Regulamente Disciplinar do Exército (R4), que define a proibição quanto a qualquer militar da ativa em “manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária“.
Ao não punir Pazuello as forças armadas passam uma péssima mensagem ao restante da força: está liberado. Um general de três estrelas (de divisão) pode violar o código disciplinar e participar da política. Então pode também um general de duas estrelas (de brigada), um coronel, um sargento, um soldado.
Para ser mais claro, com a decisão das forças armadas de não punirem o General Pazuello, e fazer cumprir seus dispositivos legais que regulamentam a punição em caso de descumprimento da regra, no dia de ontem as forças armadas deixaram claro que não conseguem manter a hierarquia de pé diante de pressões políticas. Portanto, sua ordem interna corre sério risco, assim como a própria democracia e o Estado Democrático de Direito, que mesmo após as diversas traições cometidas pelas forças armadas no século XX, resolveram anistiá-los.
A partir da história brasileira de baixa institucionalização das regras e da manutenção delas, vemos que embora a história nos mostre que em democracias desenvolvidas é possível harmonizar a relação entre militares e democracia, como nos EUA, nossa proximidade histórica e recentes atitudes daqueles a quem confiamos as armas do país, não nos aproximam das grandes democracias, mas sua desobediência à lei e conivência com que o faz, nos ligam mais a “republiquetas de bananas”, como Venezuela.
Não, não estamos no caminho certo.
(Guilherme Carvalho é mestre em Ciência Política (UFG), Professor dos cursos de Direito e do MBA de Gestão de Políticas Públicas da UniAraguaia. Também é Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Eleitoral e Ciência Política (GEDECiP). Escreve para o Diário de Goiás sempre às quintas-feiras. Excepionalmente esta semana, a publicação se deu ao sábado (05/06). As opiniões do autor deste artigo não refletem à opinião do veículo.)