08 de setembro de 2024
Opinião
Publicado em • atualizado em 07/03/2024 às 19:01

Quando a religião passa por cima da lei

(Foto: reprodução)
(Foto: reprodução)

Constantemente no Brasil, as mulheres se veem diante de situações polêmicas por parte de hospitais e outras instituições de saúde que se recusam a atender os direitos que elas têm garantidos na legislação, muitas vezes sob a justificativa de estarem ferindo princípios religiosos. Ao longo dos últimos anos, houve casos em que hospitais se recusaram a realizar abortos em situações previstas por lei, como estupros, e até casos em que exigiam a autorização do cônjuge para fazer laqueaduras em mulheres, o que foi revogado em 2023, por meio de uma lei.

Um dos casos mais recentes a ganhar espaço nos noticiários ocorreu no início deste ano, quando um hospital particular de São Paulo se recusou a inserir DIU numa paciente, alegando que não faz esse tipo de procedimento por ser uma instituição religiosa. Diante disso, o Ministério Público chegou a abrir um inquérito para investigar a conduta do hospital. O tema divide opiniões, pois até entidades como o Conselho Regional de Medicina de São Paulo afirmam que os hospitais particulares não têm obrigação de realizar esses procedimentos.

Contudo, é importante considerar que o Conselho Regional de Medicina ou um hospital de qualquer estado não tem a força normativa da Constituição Federal e de uma lei. Portanto, o que deve ser seguido e atendido é o que temos como garantia constitucional e direito fundamental. O planejamento familiar é, de fato, configurado como um direito a todos os cidadãos na própria Constituição e está regulamentado na Lei nº 9.263, de 1996.

Além disso, negar o uso de métodos contraceptivos fere tratados internacionais de Direitos Humanos, como o Pacto de San Jose, que também foi assinado pelo Brasil. Portanto, diante de recusas com esse teor, existem graves violações de direitos. Negar a realização desse tipo de procedimento também parece ser uma forma de não garantir a autonomia das mulheres sobre os seus próprios corpos. Sabe-se que a questão da contracepção e do planejamento familiar é muito mais agravada quando relacionada ao gênero feminino.

As consequências costumam ser mais específicas e sérias para as mulheres, não somente pela gravidez em si, mas também pela própria criação dos filhos. Isso porque temos uma sociedade e um Estado que utilizam o Judiciário e outras instituições para impor uma rigidez de exigências bem maior para mulheres do que para homens. Muitas vezes, o Judiciário também não consegue efetivar o que já é previsto em lei em busca dos direitos de crianças e adolescentes, desde garantia de guarda e pensão alimentícia até proteção contra violência familiar.

Isso é também uma das possíveis consequências da recusa de procedimentos médicos legais que começa lá atrás. É importante frisar que, individualmente, os médicos podem negar atendimentos, procedimentos e tratamentos, justificando questões morais, éticas ou religiosas. Contudo, isso não se aplica a instituições de saúde. Por exemplo, se uma menina com menos de 14 anos grávida for a um hospital para interromper sua gestação, ela precisa ter esse direito atendido, pois relações sexuais com menores de 14 anos são consideradas estupros pela lei.

Assim, todos os médicos da instituição podem até se recusar a fazer o aborto dessa menina, mas é dever do hospital ir atrás de profissionais que não têm essa objeção de consciência para realizar o procedimento legal. Em linhas gerais, as repetidas situações polêmicas a que muitas mulheres são submetidas no Brasil apontam um holofote para um problema que existe há bastante tempo: a violação constante e contínua dos direitos das mulheres.

Tal violação acaba gerando mais situações de violência e é um desrespeito aos direitos básicos das mulheres. Tudo aquilo que permeia o que é religioso e moral não deveria interessar nas discussões em nível coletivo, pois é necessário que seja garantido a todas o acesso a métodos contraceptivos e o direito à autonomia dos próprios corpos, para que cada uma decida individualmente o que deseja fazer.

Ana Carolina Fleury, advogada especialista em direitos das mulheres, mães e crianças e professora de cursos de Direito Penal e Direito da Família

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