É provável que a compreensão dos vereadores e deputados estaduais acerca da Ideologia de Gênero seja confusa e imprecisa, como tem sido na sociedade. Isto porque há uma cortina de fumaça discursiva, instalada intencionalmente e muito bem articulada, para dificultar a chegada das diferentes informações às pessoas e formar um consenso sobre o tema. Esta dificuldade é posta ao público pela escolha lexical, a interdição de dizeres, uma rala e puída roupagem científica, além de um intrincado labirinto semântico para os seus conceitos, termos e nomenclaturas.
Caso os políticos ainda não dominem todos os discursos envolvidos, é bom que rompam o nevoeiro estabelecido e conheçam urgentemente as diferentes visões acerca do assunto, para o voto consciente e sintonizado com os interesses majoritários da população. Esta matéria permanecerá nas assembleias legislativas e câmaras de vereadores até o próximo dia 24, tempo limite para que os Planos Municipais e Estaduais de Educação (PME e PEE, respectivamente) sejam votados e sancionados.
O leitor deve ter acompanhado a votação do Plano Nacional de Educação (PNE) no Senado, em 2012, e na Câmara dos Deputados, em 2014. Em ambas as casas legislativas a Ideologia de Gênero foi apresentada, por iniciativa do Governo Federal, mas rejeitada pelos dois plenários. O Congresso deu a seguinte redação final à Lei 13.005/2014, em seu art. 2, inc. III: dizendo que o Estado deve garantir “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”, sem, no entanto, especificar e/ou privilegiar grupos sociais.
Agora, a mesma matéria ressurge nas votações dos Planos Municipais e Estaduais de Educação, trazida pelo relatório final da 11ª Conferência Nacional de Educação (CONAE), do Ministério da Educação (MEC). Este relatório comumente usado pelas prefeituras e estados para construírem seus planos, ignora a decisão do Congresso e faz 35 referências à Ideologia de Gênero. O relatório traz, por exemplo, palavras e termos rejeitados no PNE, a saber: Gênero, Identidade de Gênero, Ideologia de Gênero, Diversidade Sexual, Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Homofobia e Orientação Sexual. Ao trazer de volta estas expressões, o texto do CONAE induz prefeituras e estados a também ignorarem à vontade do Congresso manifestada no texto do PNE. Além do mais, abre espaço nos planos educacionais para a inclusão do ensino da Ideologia de Gênero, no decorrer dos 10 anos de validade desses documentos.
Por trás da insistência governamental, está a intenção de normatizar e incrementar o ensino do Gênero que, incluído nos temas transversais, já faz parte da rotina pedagógica de várias escolas. O MEC e as secretarias estaduais e municipais de educação realizam cursos para a formação de professores em cooperação com universidades, movimentos sociais em defesa dessa causa e editoras de livros didáticos e paradidáticos. Mesmo sendo notório que o assunto choca e incomoda uma parcela considerável de pais, alunos e professores que se sentem indefesos diante da força de imposição que esta visão opera no sistema de ensino.
Afinal, o que prega a Ideologia de Gênero?
De acordo com a Ideologia de Gênero, os seres humanos não se dividem em dois sexos e as diferenças biológicas e naturais não contam para a definição do homem e da mulher, mesmo diante das diferenças anatômicas. As pessoas tornam-se homens ou mulheres, ou adquirem esses papéis, com o passar do tempo, de acordo com o contexto histórico, social e cultural.
Em vista disso, as crianças devem ser criadas e educadas de forma “neutra” para que elas mesmas escolham o Gênero no futuro, independente da identidade dos seus corpos. A escolha, no entanto, nem sempre é definitiva porque é visto como normal ao homem gostar de mulher em determinado período da vida, de homem em outro momento, ou gostar de ambos. Da mesma forma, é considerado normal que o mesmo fenômeno ocorra também com as mulheres.
Essa ideologia recomenda à escola a não classificar os alunos em meninos ou meninas, mas crianças. As roupas e suas cores, brinquedos e banheiro, é melhor que sejam compartilhados igualmente por ambos os sexos, sem as conhecidas diferenciações marcadas pela cultura tradicional. Todas essas medidas são consideradas importantes porque propiciam um ambiente de igualdade e neutralidade necessário ao processo de definição do Gênero por parte das crianças.
A construção do conceito de Ideologia de Gênero
A palavra “gênero” é usada desde os anos de 1980 em estudos de grupos feministas, gayzistas e marxistas sobre família e sexualidade, baseados nas teses de Karl Marx e Friedrich Engels. Mas foi a partir de 1990, impulsionadas pela publicação do livro “O problema do gênero”, de Judith Butler, professora da Universidade de Berkeley (EUA), que essa palavra e essa ideologia gradativamente evoluíram para a atual configuração.
Um momento importante para o reconhecimento e desenvolvimento dessa ideologia foi a IV Conferência Mundial sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz, de Pequim, em 1995. Constava no programa que se falasse sobre “discriminação sexual”, mas os grupos feministas conduziram astutamente a discussão para a “discriminação de gênero”. Com essa estratégia, introduziram este tema na agenda da Organização das Nações Unidas.
A confusão semântica causada pela palavra “gênero” durante a Conferência de Pequim, e nos anos subsequentes, teve culminância na Conferência de Yogyakarta, na Indonésia, em 2006, quando se produziu um consenso acerca dos termos “Identidade de Gênero” e “Orientação Sexual”. Nesta Conferência, além de resolverem o problema semântico, os grupos feministas e agora também os gayzistas, conseguiram incluir a Ideologia de Gênero no programa de direitos humanos da ONU para os países membros.
Desde então, os esforços da ONU acentuaram-se para que os países membros adotem, por um lado, a clara política de “desconstrução da heteronormatividade”, ou seja, para deixar de ser normal o masculino e o feminino e também a família formada por homem, mulher e seus filhos. Por outro lado, recomenda a “construção da homonormatividade”, ou seja, para se considerar como normais a existência do gênero neutro, à diversidade sexual e à diversidade familiar.
Essa causa ganhou mais força com a subida de Barack Obama ao poder, nos Estados Unidos, em 2009. Desde então, ele trabalha para quebrar a resistência do tradicionalismo americano contra essa ideologia e usa a diplomacia e as relações comerciais para promover a agenda de Gênero no mundo. Ele criou, por exemplo, a função informal de “embaixador gay” com a finalidade de divulgar a causa no mundo e nomeou Randy Berry para o posto. Este diplomata, inclusive, veio prestigiar a última parada gay de São Paulo.
A eleição presidencial de François Hollande, na França, representou mais um ganho extraordinário para esse movimento. O presidente francês empenha-se em implantar essa agenda em seu país e influenciar os países membros da Comunidade Europeia a tomarem decisão semelhante. Em abril passado, numa clara intenção de desafiar e ao mesmo tempo provocar desconforto à Igreja Católica, o presidente francês indicou o diplomata Laurent Stéfanini, gay assumido, para o cargo de embaixador no Vaticano. O papa Francisco não o aceitou.
O Brasil foi um dos primeiros países a seguir essa orientação da ONU quando, em 2009, o presidente Lula assinou o Decreto 7037/2009 que aprovou o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Em seu eixo orientador III, diretriz 10, objetivo estratégico V, ação programática d, o Decreto estabelece a meta de: “reconhecer e incluir nos sistemas de informação do serviço público todas as configurações familiares constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, com base na desconstrução da heteronormatividade.” (grifos nossos). Ou seja, o Governo não quer somente o reconhecimento das outras configurações familiares e da diversidade sexual, como se propaga ao senso comum, mas a desconstrução do status de normalidade para a família tradicional, ainda contemplada na Constituição.
Para que as mudanças ocorram efetivamente, é necessário mudar a Constituição. Os governos Lula e Dilma bem que tentaram, mas não venceram a resistência do Congresso. O último exemplo foi a tentativa de incluir a Ideologia de Gênero no PNE. Ciente da pouca chance de cumprir com sua agenda no Congresso, o governo vale-se da estrutura de secretarias especiais, ministérios, autarquias e estatais para estabelecer a sua vontade, driblando a Constituição e o Congresso. Dessa forma, empreende ações por meio de decretos, portarias, resoluções e até circulares. Além do mais, oferece estrutura, cargos, financiamento e dá liberdade para que defensores dessa ideologia exerçam o lobby dentro do próprio Governo e também em estados e municípios com a finalidade de implantar políticas do interesse deles. Foi assim, driblando a vontade do Congresso, que o CONAE/MEC inseriu em seu relatório todos os interesses da Ideologia de Gênero.
Argumentos favoráveis e contrários.
A professora Ângela Soligo, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entende que os gêneros devem ser debatidos com as crianças em sala de aula. Segundo ela, a criança precisa alargar os horizontes e obter conhecimentos diferentes daqueles recebidos em casa. Para tanto, “não se pode negar que o gênero diferente do sexo exista. A escola tem que fornecer ao aluno subsídios para que ela pense e construa suas próprias opiniões.” O cientista social Alípio de Sousa Filho, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), demonstra a construção histórica da sexualidade humana para relativizar a crença na heteronormatividade: “(…) no longo processo de colonização do imaginário de nossas sociedades, ganhou força uma concepção que corresponderia a uma naturalização da sexualidade humana, cujo efeito mais destacado é ter criado a ideia segundo a qual a heterossexualidade seria inata (a natureza daria os exemplos em todas as espécies), sendo então natural e normal, e a homossexualidade seria uma tendência adquirida, nem natural nem normal.”
O discurso de resistência ao Gênero nas escolas ecoa em algumas vozes. O juiz de direito Antonio Pimenta, de Guarulhos (SP), questiona a fonte dessa teoria: “Você querer colocar na cabeça de um ser humano que ele pode ser mulher se ele nasceu com corpo masculino é negar a biologia.” O pastor Franklin Graham tenta desconstruir o principal fundamento dessa visão ideológica: “Ensinar que não há diferença entre meninos e meninas nada mais é do que uma mentira. Somos diferentes porque Deus nos fez diferentes.” O Papa Bento XVI sintetiza a visão comum aos cristãos: “De acordo com a ideia bíblica da criação, a essência da criatura humana é a de ter sido criada homem e mulher. Esta dualidade é um aspecto essencial do que é o ser humano, como definido por Deus. Esta dualidade, entendida como algo previamente dado, é o que está a ser agora colocado em causa.”
Uma ideologia que se estabelece com força de verdade para governos e mercados
Talvez o leitor questione por que uma ideologia sem consenso na sociedade e na Ciência, mesmo nos campos científicos nos quais estabeleceu, ganha status de verdade absoluta a ponto de influenciar leis e forçar a mudança de paradigmas sociais cristalizados. Uma ideologia que embora trate do corpo, não se firmou nos estudos biológicos e genéticos, mas acomodou-se nas ciências sociais e humanas, sobretudo nos limites do discurso e do comportamento. Uma ideologia que não consegue se equilibrar no critério cartesiano de verdade. Que para vestir-se no manto científico, orienta-se nos terrenos movediços do desconstrutivismo e do relativismo filosófico. Muitos dos seus achados importantes vieram pelo método científico de pesquisa-ação, que é livre de preocupação objetiva e predominantemente subjetivo como nenhum outro método. Este é, aliás, um método científico ideal para a pesquisa engajada e de legitimação para a militância de causas.
É possível que haja bem mais relações de interesse do que é percebido pelo senso comum sobre o esforço global para a troca da heteronormatividade pela homonormatividade nas sociedades. Este não é, portanto, um fenômeno somente brasileiro. Algumas perguntas em forma de resposta, inclusive, podem ser arriscadas a partir da análise dos ditos e não ditos encontrados em vozes de autoridade para essa ideologia e também das Nações Unidas.
Merecem estudos aprofundados, por exemplo, as motivações da ONU, dos governos, das universidades e grandes empresas em apoiar e promover a Ideologia de Gênero, elaborada a partir dos ideais feministas e gayzistas. Pode-se especular que atende aos interesses globais pelo controle demográfico, por razões óbvias; da indústria turística e do entretenimento, porque aumenta a liberdade e o desprendimento individual para viagens; o maior consumo de bens e serviços de uso individual porque se gasta menos com o sustento e a fixação da prole; maior volatilidade dos bens e recursos individuais; reflexos diretos nos sistemas de previdência pública e privada e de seguros; menor apego à cultura e aos valores locais e familiares em atendimento à cultura e valores universais; menor compromisso do indivíduo com o núcleo familiar, em benefício do coletivo; menor necessidade de acúmulo de capital para investimento na família ou herança; fortalecimento dos governos e do mercado sobre a vontade dos cidadãos, pelo enfraquecimento e/ou derretimento do modelo de agregação familiar tradicional; tentativa de quebrar a espinha dorsal das culturas judaica e cristã, (e o consequente enfraquecimento da influência dessas culturas neste novo mundo que se desenha) visto que são baseadas nos conceitos de heteronormatividade e de família tradicional. Pelo visto, o apreço que essa ideologia alcança principalmente dos governos, dos mercados e da cultura é porque ela serve muito bem ao projeto de construção de uma Nova Ordem Mundial.
Uma ideologia que se beneficia da interdição dos discursos
Infelizmente, não há na academia espaço para vozes contrárias à essa ideologia, onde especulações como as listadas acima pudessem ser confirmadas ou não. Isto porque, como estratégia de proteção contra as contestações, estabeleceu-se a interdição discursiva, ou seja, esse tema foi colocado no campo dos assuntos tabu e do politicamente incorreto. O lema é não discutir, mas aceitar incondicionalmente o que se diz. Com isto, a universidade deixa de contemplar a pluralidade de ideias para satisfazer-se num projeto que estabelece nela e na sociedade uma hegemonia discursiva.
O espaço para a contestação acha-se cada vez mais escasso também no restante da sociedade de predominância heteronormativa. Pode-se considerar que a influência formadora da pesquisa engajada que é produzida na universidade, atravessou os seus muros e os efeitos se instalaram na sociedade. Hoje, centros acadêmicos, sindicatos, partidos políticos, entidades representativas de classe e imprensa, com raríssimas exceções, acham-se subjetivados e submissos à essa ideologia. Os recursos argumentativos de defesa e ataque criados e desenvolvidos pelos que seguem essa visão, cumprem o efeito de calar os que se opõem. Mesmo que sejam manifestações pacíficas de opinião e respeitosas. Não escapa nem tese acadêmica. Tudo isto é feito com a intenção promover uma agenda positiva sem a necessidade de enfrentar o debate de ideias.
Na própria universidade, há questionamentos sobre os gastos públicos com disciplinas ligadas ao Gênero criadas para espalhar a ideologia nos mais diversos cursos de graduação, especialmente nas licenciaturas, e também na pós-graduação. As interpelações internas à universidade são mais contundentes quando se analisa a função dos grupos de pesquisa e da produção de dissertações e teses. Em parte, essa produção acadêmica é financiada pela CAPES e pelo CNPq, além de agências de fomento estaduais. A crítica corrente diz respeito à necessidade de racionalizar a aplicação do escasso dinheiro público para a pesquisa científica, haja vista que o país carece, prioritariamente, é de encontrar o rumo para o desenvolvimento educacional, científico e tecnológico.
Os deputados estaduais e vereadores precisam também interpretar o sentido da mensagem veiculada pela máquina de propaganda dessa ideologia. A ideia repetida à exaustão, que hoje é quase senso comum, empresta aos contrários ao ensino da Ideologia de Gênero para as crianças, o título de preconceituosos. Segundo a propaganda, essas pessoas interferem na opção sexual de terceiros e impedem a realização de seus direitos. Mas esta não é a regra. Pelo menos os bem intencionados defendem às liberdades para todos, sem privilégios, o respeito entre as pessoas e que todos usufruam igualmente dos benefícios do estado democrático de direito.
O que está em discussão neste momento é a possibilidade de se aprimorar e tornar compulsório o ensino da Ideologia de Gênero para crianças e adolescentes em creches, cmeis de escolas públicas e privadas. Uma ideologia ainda em desenvolvimento, muito controversa, que substitui a heteronormatividade (eixo no qual as crianças são criadas em nossa sociedade) pela homonormatividade. É justamente esta substituição que se constitui no principal ponto de discórdia entre os dois grupos. Outro ponto de discórdia igualmente importante é a proposta de fazer com que as crianças educadas pela escola nessa ideologia, assumam a tarefa de mudar a visão de suas famílias e da sociedade. Visão esta considerada desatualizada, preconceituosa e constituída de tabus. Uma pergunta que surge neste final é quais as consequências e conflitos um projeto como esse, de reengenharia social, pode trazer aos alunos e às famílias visto que são culturalmente arraigados no modelo tradicional de família.
Orley José da Silva, é professor em Goiânia, mestre em letras e linguística (UFG) e mestrando em estudos teológicos (SPRBC).