O relatório publicado em 2020 pela organização Latinobarômetro, acerca da opinião pública brasileira sobre confiança democrática, nos presenteou com resultados no mínimo preocupantes. Segundo a pesquisa, apenas 39,7% dos brasileiros acreditam que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. Assim dizendo, tanto para 36% não faz nenhuma diferença nas suas vidas vivermos ou não em um regime político democrático, como para 11,4% um governo autoritário pode ser aceitável em algumas circunstâncias conjunturais.
Estes dados, longe de serem expletivos, condicionam a pensarmos na descrença ou indiferença como atestados de que é necessário consolidar um debate sério sobre qual democracia queremos no país. Até porque é inegável o reconhecimento dela, no contexto geopolítico atual, enquanto regime político de afirmação total. Isto é, já não podemos contemporizar a exaltação da política como liberdade, igualdade e condecoração de direitos sem vinculá-la com esta experiência germinada lá em Atenas, na Grécia Antiga por volta do século VII a.c.
Tendo vivenciado durante muitos séculos uma disseminação de regimes políticos oligárquicos, atrelados com a consolidação do modo de produção feudal, o mundo ocidental atravessou o rubicão para a modernidade exaltando modelos de se organizar a vida pública que incorporassem os preceitos da distribuição equitativa de poder para tomada de decisões coletivas, bem como o exercício deste poder pela população em geral (ou ao menos pela maioria).
A Inglaterra demonstrou os significados da pluralidade parlamentar após a Revolução Gloriosa em 1689 e a assinatura do “Bill of Rights”, um robusto golpe no absolutismo naquele país, que materializou as garantias legais do Estado de Direito. Nos Estados Unidos, o processo emancipatório das 13 colônias e a promulgação da primeira (e única) Constituição em 1787 veio a consolidar o pacto federativo, a defesa irrestrita do direito de propriedade, o comunitarismo voluntário e a divisão dos três poderes, conquistas significativas que despertaram no aristocrata francês Alexis de Tocqueville o entusiasmo filosófico sobre os significados de um modelo de regência democrática plena – eternizados na seminal obra “Da Democracia na América” -, como também inspirou diversas Repúblicas que surgiram posteriormente mundo afora (inclusive a brasileira).
E claro, não poderíamos deixar de mencionar, algumas das inúmeras marcas deixadas pelo processo revolucionário na França em 1789, como a afirmação burguesa da sociedade de classes, em substituição a sociedade de ordens, a prerrogativa da abolição dos privilégios clericais e da nobreza e o projeto de Nação, entendido através da soberania popular e da incorporação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão no ethos do pensar a convivência política.
Estes acontecimentos históricos de forma alguma encerraram as propositivas sobre os significados dos indivíduos terem ao seu alcance a possibilidade de contestação e participação sobre os rumos da vida pública. Isto porque a democracia não é um regime perfeitamente lapidado, um modelo racionalmente orquestrado e que estaria disposto para usufruto livre em qualquer projeto de nação livre. Pelo contrário. A democracia é um ideal inacabado, justamente porque permite diferentes configurações e/ou interpretações em suas acepções.
Existem alguns elementos-chave que preenchem os requisitos de democracias consolidadas mundo afora: eleições diretas, o estado de direito, separação de poderes, a presença do parlamento, a pluralidade do jogo político, o reconhecimento de situação e oposição, a opinião pública e a liberdade de expressão e de imprensa. No caso brasileiro, conseguimos visualizar com maior nitidez esta questão da ânsia de constantemente afirmarmos a democracia não como uma opção, mas como uma realidade em construção.
Até porque estamos falando de um país que vivenciou grande parte de sua história tutelada por “formatos” políticos que passaram longe do entendimento democrático mínimo. E, claro, não podemos esquecer do título que vergonhosamente carregamos por sermos o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Aliás, em pleno século XX, arroubos autoritários deram a tônica em diferentes momentos críticos, inacreditavelmente justificáveis (sic) pela demanda de organizar supostas convulsões sociais e diacronias no trato com a coisa republicana.
O Estado Novo e a Ditadura Militar certamente não são frutos de obra de ficção. Em tempos recentes, era de se esperar uma conduta de grande parte da sociedade brasileira em beneplácito da Carta Magna de 1988, ante suas prerrogativas de real reiteração dos direitos. O que as pesquisas vêm mostrando, infelizmente, é o real descrédito dos cidadãos com práticas políticas elementares na afirmação principalmente dos direitos políticos. Quem ousa acreditar em projeto partidário num país de intenso fisiologismo em grande parte destas organizações? Quem ousa acreditar na força do voto, quando vai ano e vem ano a política institucional ineficiente, clientelista e corrupta assombra qualquer boa intencionalidade da práxis?
Acredito que o caminho da afirmação democrática deve ser trilhado no escopo da ininterrupta capacidade da sociedade civil em potencializar maiores mecanismos de controle social da política e do engajamento na vida pública. Uma democracia com feições participativas, pois quebrar os paradigmas do elitismo democrático conecta-se também com uma concepção moral do que representa o poder do povo, pelo povo e para o povo.
José Elias Domingos Costa Marques é mestre em Ciência Política pela UFSCar, doutor em Sociologia pela UFG e professor do Instituto Federal de Goiás.