31 de agosto de 2024
Opinião
Publicado em • atualizado em 15/08/2013 às 19:42

O novo “terceiro estado”

 

Em uma sociedade dividida por três estamentos, nobreza, alto clero e a população restante (baixo clero, trabalhadores, servos e comerciantes), o Abade Emmanuel Sieyès escreveu o célebre folheto “O que é o terceiro estado?”, onde questiona a estrutura política da França pré-revolucionária. Uma forte carga de obrigações impostas ao “terceiro estado”, perante uma série de garantias de privilégios aos outros dois estamentos – nobreza e clero caracterizava o Antigo Regime. Concluiu, de forma sintética, que o “terceiro estado” era tudo, mas que não representava nada, e que pedia, apenas, para ser alguma coisa.

O povo brasileiro está queixoso, e é salutar que o esteja. Como nunca antes na história republicana, foi promovida a maior inclusão de pessoas da história, com mais de 40 milhões de brasileiros ingressando na classe média. Enquanto a desigualdade social, durante a década de 90, aumentou em 58% dos municípios brasileiros; durante o 2000/2010, reduziu em 80% dos municípios – ou seja, notadamente marcas das políticas socioeconômicas desenvolvidas nos governos do presidente Lula.

Essa nova classe média representa o oposto da velha classe média e das elites oligárquicas ainda imperantes no nosso país, em especial nos meios de comunicação tradicionais. A nova classe média quer mais direitos. O povo brasileiro nunca foi omisso, preguiçoso ou apático – não há cidadania, quando se luta contra a fome diariamente. Assegurado o mínimo existencial, as pessoas pedem mais, pois ampliam a percepção dos direitos. A fome é a maior catarata que macula a visão plena de cidadania.

É dever do Estado prover educação, saúde, transporte dignos. Estado em uma acepção lato sensu, ou seja, de todos os entes federados. A presença do Estado na vida das pessoas é esperada e exigida, e levou milhões de pessoas às ruas, em um surto de manifestações coletivas sem precedentes, com uma pauta difusa e dispersa, que exigirá bastante dos sociólogos e historiadores para a devida compreensão.

Já nossa classe média tradicional e as elites hegemônicas do país possuem outra pauta, oposta a da nova classe média. De forma honesta, afirmo que a própria “nova classe média” causa ojeriza a estes setores de privilegiados antigos – ver pessoas com bermuda, chinelão e uma camisa do Flamengo nos aeroportos causa um pânico coletivo no âmago dos moradores da Casa Grande (elites) e dos seus serviçais diletos (classe média antiga).

Esse setor, acostumado a se sentir superior em relação aos demais, em razão da pauta histórica de discriminações sociais que vigeram no país, se agarra a um pensamento liberal-econômico hipócrita e cínico. São os primeiros a gritar contra a carga tributária e contra programas de assistência social, mas o Estado Brasileiro sempre teve seu bolsa família destinado a poucas famílias: ao comprar sacas de café para queimar, havia um “bolsa-família-oligárquica”. Ao ainda destinarmos 48% do PIB para amortização dos juros e pagamento de dívidas aos bancos, temos um “bolsa-família-banqueiro”. Isso sem comentar no “bolsa-BNDES”, que financia tudo, menos o caráter social do desenvolvimento econômico brasileiro. Mesmo com algumas ambiguidades deste nível persistindo nos governos do PT, a velha oligarquia insiste em abominá-lo pelos seus méritos: incluir os excluídos.

É nesse paradoxo que está o grosso da população, ou o nosso novo terceiro estado: entre o discurso daqueles “liberais” que sempre tiveram um Estado a servi-los; e, de outro lado, a continuidade de se aprofundar em conquistas, incluindo as minorias, gerando e distribuindo renda, aprofundando o conteúdo material da nossa democracia. Aos cômodos, basta falar que todos são iguais e sair do debate, pregando voto nulo e outros meios de consolidação de uma “zona de conforto do intelectualismo crítico”.

Nosso novo “terceiro estado” que foi às ruas, e teve sua pauta de direitos subvertida e manipulada pela divulgação da mídia tradicional, indicou que quer um Estado presente. Nosso povo quer fazer valer os seus direitos fundamentais de todas as gerações, não apenas no plano normativo, mas de verdade, cumprindo a agenda social a que se presta o Estado Brasileiro desde a promulgação da Constituição de 1988, que completa um quarto de século em 05 de outubro.

Uma pequena análise dos números da economia e da inclusão social nos últimos vinte anos indica qual lado representa os anseios do “novo terceiro estado”, e qual lado representa os interesses daqueles “liberais” que nunca dispensaram a intervenção estatal para a manutenção de seus privilégios. Cabe a nós escolhermos.

Nile William é advogado, professor universitário e mestre em Direito pela UFG.