Há tempos que a população do Entorno aguarda com expectativa a chegada de políticas públicas que possam contribuir para reduzir as enormes desigualdades em relação ao Distrito Federal e garantir à região o avanço em direção a um processo de inclusão social.
Segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios de 2021 (PDAD/2021), coordenada pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), a renda domiciliar média mensal no DF é estimada em R$ 6.938,40. Por outro lado, a Pesquisa Metropolitana por Amostra de Domicílios 2019/2020 (PMAD), sob a responsabilidade da mesma Companhia, identificou que essa mesma renda é de apenas R$ 2.551,89 na Periferia Metropolitana de Brasília, que congrega os 12 municípios goianos vinculados diretamente ao DF.
Quando se fala em mobilidade urbana, esses contrastes se mantém, por exemplo, segundo as duas pesquisas, em relação ao item principais meios de transporte utilizados para deslocamento ao trabalho: enquanto no DF o automóvel é o principal modal para a realização da viagem (= 48,4%), seguido do transporte público por ônibus que responde por 33,3%, na região do Entorno os papéis se invertem e, neste caso, o transporte público rodoviário representa 47,9% da matriz modal e o transporte individual motorizado assume 27,01%.
O papel do transporte público no Entorno é ainda mais relevante quando se analisa, especificamente, os modais utilizados pela população dos municípios goianos para o deslocamento até o trabalho no Distrito Federal: as viagens através de ônibus do sistema de transporte coletivo saltam para 60,37%.
As desigualdades entre as duas regiões se manifestam também no tempo de viagem até o trabalho: se no Entorno, 25,57% dos deslocamentos são feitos em tempo acima de 1 hora, no Distrito Federal esse número cai para menos da metade, ou seja, 11,5% das viagens realizadas.
Considerando que o transporte público é fundamental para a chegada da população do Entorno ao DF, mesmo com a realização de viagens mais longas, em frotas de ônibus com idade superior e com tarifas mais caras do que as praticadas em Brasília, avalia-se que quase nada se avança para que esse sistema seja qualificado e possa efetivamente corresponder às expectativas da população que depende dele. Ao longo dos anos, muitas propostas e promessas já foram apresentadas em diferentes níveis, exatamente como está acontecendo agora, criando ilusões de que as mudanças finalmente sairiam do papel, mas que sempre acabam, infelizmente, aumentando a frustração da população.
O Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade do Distrito Federal (PDTU/DF), instituído pela Lei no 4.566/2011, sinalizou com a perspectiva de mudança quando destacou a “implantação do sistema integrado de transporte público de passageiros do Distrito Federal e Entorno”, como uma das suas diretrizes, estabelecendo a responsabilidade ao GDF para a articulação com os outros entes federados visando ao alcance desse objetivo. No entanto, infelizmente mais uma vez, nada de concreto aconteceu ao longo dos anos.
Diante das dificuldades financeiras enfrentadas pelos municípios, das limitações para a atuação da União, via Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), como gestora do Serviço Interestadual Semiurbano que opera no Entorno e da ausência do Governo de Goiás no debate do transporte público na região, o Governo do Distrito Federal (GDF) sempre foi visto como o ente mais adequado para conduzir o processo de integração entre os dois sistemas de transporte coletivo e poder contribuir para melhorar as condições de vida da população dos municípios goianos. Nesse sentido, no final de 2020 avaliamos como positiva a transferência que a ANTT fez ao GDF, por meio do Convênio de Delegação no 001/2020, quando repassou as competências de gestão, regulação e fiscalização do Serviço Interestadual Semiurbano.
Entretanto, mais uma vez as expectativas se transformaram em decepção. Ao longo de quase dois anos, o GDF foi incapaz de promover mudanças significativas que pudessem ser percebidas pelos usuários do transporte público. Tudo continuou exatamente como era antes da delegação do sistema do Entorno, a não ser intervenções pontuais promovidas, como a liberação para a circulação de ônibus que operam no Eixo Sul do Entorno no corredor do BRT, nos horários de picos, além da recomendação para a implantação de novos validadores visando à padronização com o Sistema de Bilhetagem Automática utilizado no DF, mas que também não avançou, até porque representavam novos custos para os operadores e sem previsão contratual em um regime completamente dependente das tarifas para o seu financiamento.
O GDF resistiu à proposta de se avançar no desenho de uma rede metropolitana e integrada de transporte público, buscando a articulação efetiva com os outros entes, sob o argumento de que questões de segurança jurídica impediam a construção desse arranjo. Ao contrário disso, defendeu um modelo baseado simplesmente na implementação de uma integração física, não tarifária, entre os dois sistemas de transporte, onde o usuário do Entorno faria o pagamento de uma primeira passagem para uma viagem mais curta até o ponto de conexão na fronteira com o Distrito Federal (nem se tinha a garantia de que isso ocorreria em um terminal de entrada), desembolsando novo pagamento para a entrada na rede do DF.
Esse modelo já tinha sido desenhado pela ANTT em uma proposta de plano de outorga de 2017 e o GDF avaliava insistir com essa lógica que é extremamente perversa para o usuário do Entorno, pois o novo custo com a passagem para a realização das duas viagens ficaria acima do desembolso atual que é feito pela população goiana. Apostar nesse arranjo que onera mais o usuário do Entorno significa desestimular o uso do transporte público e empurrá-lo para outras soluções, como o automóvel, a motocicleta ou o transporte clandestino, que tem uma presença forte nas cidades goianas e sobre o qual a própria ANTT nunca conseguiu atuar com eficiência.
Recentemente tivemos um fato novo nesse debate do transporte público e, mais uma vez, uma nova expectativa positiva foi gerada, com a anunciada intenção do Governo de Goiás em participar ativamente na construção de uma solução para o sistema interestadual semiurbano. Amparado pela experiência implementada na região metropolitana de Goiânia, onde opera um sistema de transporte baseado em uma rede integrada, com bilhete único temporal e com tarifa única em todo o território, viabilizado com o aporte de recursos de três prefeituras e do estado para a cobertura dos eventuais déficits, o governo estadual sinalizou com a disposição de introduzir um modelo de gestão compartilhada no transporte público do Entorno do DF.
Nesse sentido, o Governo de Goiás inclusive impetrou ação no Supremo Tribunal Federal (STF)questionando a delegação isolada do Serviço Interestadual Semiurbano ao GDF e, por último, nova arguição foi realizada, dessa vez demandando a suspensão dos reajustes autorizados pelo Governo do Distrito Federal sobre as tarifas praticadas pelas 7 operadoras do transporte público na região do Entorno, mesmo com estudo técnico respaldado pela ANTT, o que foi acatado preventivamente por aquela corte.
Entretanto, como consequência direta ou não dessa movimentação, o GDF decidiu devolver a delegação do Serviço Interestadual Semiurbano à ANTT e a esperança de avanços para a população do Entorno parece ficar mais uma vez distante. Tem-se conhecimento de que os entes federados estão envolvidos em um processo coletivo de discussão acerca de alternativas institucionais que poderiam ser implementadas, inclusive com a sinalização da possível criação de uma região metropolitana do Entorno, por meio de lei estadual, que viria assegurar as condições jurídicas para a instituição de um consórcio interfederativo e a posterior efetivação de um sistema metropolitano, que deveria englobar também a operação do DF para que, enfim, se tivesse uma rede única de transporte público dentro do território.
Ninguém tem dúvida de que o processo de construção de uma rede metropolitana é longo, que deve incorporar os 4 entes envolvidos no tema do transporte público na região (União, Governos de Goiás e do DF e os municípios), que vai exigir uma concertação coletiva que envolverá estudos técnicos aprofundados, inifinitas reuniões e negociações, maturidade e responsabilidade institucional, decisões políticas que apontem mudanças, aporte de recursos, suporte legislativo e gestão compartilhada, mas sobretudo é fundamental inserir a sociedade nesse arranjo. É inconcebível a condução do processo e a tomada de decisão sem a participação dos habitantes do Entorno, com discussões que se restringem a círculos que estão muito distantes da realidade do território e, pior ainda, a busca de soluções que coloquem a conta do financiamento do sistema no colo do usuário.
Nesse processo não há espaço para disputas políticas entre governos e nem para vaidades pessoais ou de qualquer autoridade. É o interesse público que deve orientar a construção da rede metropolitana. Basta de se criar ilusões e de não se avançar em direção à consolidação de políticas que promovam a inclusão da população do Entorno. Há um caminho longo para a validação de questões como modelo de gestão, financiamento, remuneração, controle social, planejamento, fiscalização, tecnologia, etc.
Entretanto, é necessário avançar no curto prazo para que algumas conquistas possam ser percebidas e apropriadas pela população do Entorno, sem necessariamente ter que aguardar a espera da formatação final do arranjo. Nesse sentido, que tal viabilizar vias exclusivas provisórias com faixas reversas, nos horários dos picos, nos trechos que dão acesso ao DF e que são utilizados pelo transporte público, através de negociações que envolvam os entes federados diretos, mas também instituições como Polícia Rodoviária Federal, DER, DNIT e concessionárias das rodovias federais (BR-040 e BR-060)? Reduzir o tempo de viagem dos moradores do Entorno que utilizam o transporte público não poderia ser viabilizado com um arranjo que não envolveria grandes desembolsos e, mais importante, conquistaria apoios dentro da sociedade para validar as decisões posteriores de criação de uma rede metropolitana?
Wesley Ferro Nogueira é economista, atualmente é Secretário Executivo do Instituto MDT, colabora no Projeto “Pensar o transporte público na cidade planejada para o automóvel”, integra a Rede Urbanidade e é membro titular do Conselho de Transporte Público Coletivo do DF.