Alguns vereadores da Câmara Municipal de Goiânia têm anunciado uma proposta de Decreto Legislativo que prevê a abertura imediata das atividades econômicas no município da capital, determinada pela Prefeitura de Goiânia, em consância com o decreto do governador Ronaldo Caiado. No entanto, tal medida não tem sustentação segundo avaliação já feita pelo Supremo Tribunal Federal.
Segundo foi noticiado na imprensa o texto permitirá o retorno do comércio porque susta os efeitos de decretos do prefeito Iris Rezende que acompanharam as normas estaduais no que diz respeito ao fechamento das atividades econômicas.
Sustentam os vereadores que a Câmara Municipal detém competência para legislar sobre o tema, tendo em vista autorização dada pelo Supremo Tribunal Federal que atribuiu ao município legislar sobre as medidas de enfrentamento da Covid-19.
Uma vereadora, ainda, declarou que o Estado de Goiás teria invadido a competência do município ao decidir sobre o que fecha ou abre na circunscrição municipal.
Para tanto, os vereadores determinarão regras de vigilância sanitária e protocolos de higiene que deverão ser seguidos pelos estabelecimentos beneficiados pela medida.
Não nego, em hipótese alguma, que as restrições impostas as atividades econômicas no município, principalmente aquelas reconhecidas como não essenciais, são duras e tem asfixiado rapidamente os empreendedores. Pesquisas revelam que boa parte destes empresários não devem voltar a operar, e os que voltarem terão péssimas condições e demorarão muito tempo para se reerguerem. A situação é lastimável e preocupante.
No entanto, este estado de caoticidade e pandêmico não autoriza ao Poder Legislativo Municipal editar um instrumento legislativo que não se presta ao fim a que se pretende dar, assim como se encontra em situação diametralmente oposta à reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal.
Inicialmente é preciso esclarecer o que é o Decreto Legislativo e para o que se presta. No dizer de José Afonso da Silva, os decretos legislativos têm por função regular as matérias de exclusiva competência do Poder Legislativo, por isso dispensam a sanção do Prefeito Municipal. É o que se costuma chamar de matéria interna corporis.
O saudoso professor Hely Lopes Meirelles assim discorreu sobre o instrumento legislativo:
“…é a deliberação do plenário sobre matéria de sua exclusiva competência e apreciação político-administrativa, promulgada pelo presidente da Mesa, para operar seus principais efeitos fora da Câmara. (…) O decreto legislativo não é lei, nem ato simplesmente administrativo; é deliberação legislativa de natureza político-administrativa de efeitos externos e impositivos para seus destinatários. Não é lei porque lhe faltam a normatividade e generalidade da deliberação do Legislativo sancionada pelo Executivo; não é ato simplesmente administrativo porque provém de uma apreciação política e soberana do plenário na aprovação da respectiva proposição. Daí por que só deve ser utilizado para consubstanciar as deliberações do plenário sobre assuntos de interesse geral do Município mas dependentes do pronunciamento político do Legislativo, ainda que sobre matéria de administração do Executivo, ou concernente a seus dirigentes.”
Vale a pena observador que se a matéria exige disciplina de lei, não cabe decreto legislativo. Se o assunto não é de competência exclusiva do Poder Legislativo, também não se deve invocar o instrumento e, por fim, se é para sustar os efeitos de um decreto do Executivo por exceder seu poder regulamentar, deve, no máximo, suspender sua execução, sendo-lhe vedado revogá-lo ou disciplinar de forma diversa, como ao que parece ser esta a intenção da edilidade.
Se não bastasse a utilização de um instrumento legislativo inadequado, tenho que falta competência de iniciativa da Câmara Municipal de iniciar o processo legislativo. O assunto é eminentemente técnico, e quem detém o corpo técnico para apreciação do tema e de disciplinar as medidas de flexibilização é o próprio poder executivo. Aliás, um membro do Poder Legislativo expressamente reconhece isso quando avalia que “farão um favor à Prefeitura. O Prefeito quer flexibilizar, só que não pode fazer isso sem nota técnica da Saúde. Então, estamos dando oportunidade para a Prefeitura, pois estamos assumindo a responsabilidade”.
Observe-se que o próprio Secretário Paulo Ortegal declarou que para a reabertura é necessário primeiro haver condições epidemiológicas, deixando bem evidenciado que sanitariamente a abertura não é prudente, segundo a Secretaria de Saúde, quem detém competência técnica para essa avaliação.
É uma pena que o Poder Legislativo esteja tão mal assessorado juridicamente, pois a proposta está na contramão de decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, ao contrário do que aduziram os autores da proposta ventilada na imprensa.
Veja, por exemplo, que nos autos da Reclamação 4026 a ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou seguimento ao pedido do Município de Marília (SP) contra decisão judicial que determinou o cumprimento das disposições do Estado de São Paulo em relação à pandemia. Segundo a ministra, não houve afronta ao entendimento do STF sobre a competência concorrente dos entes federativos para tratar da matéria.
Segundo a decisão judicial, o ente municipal pode suplementar a normas estaduais e federais sobre a matéria, mas não estabelecer regras que contrastem com essas diretrizes.
Ao analisar o pedido, a ministra afastou também a alegação de descumprimento da Sumula Vinculante nº 38, pois o que se discute, no caso, não é o horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais, mas a restrição de atividades durante a pandemia impostas por decreto estadual.
Vale, ainda, nesse caso, trazer trecho da decisão monocrática proferida pelo ilustre Ministro Alexandre de Moraes, ao apreciar a ADPF nº 642:
“(…) Por outro lado, em respeito ao Federalismo e suas regras constitucionais de distribuição de competência consagradas constitucionalmente, assiste razão à requerente no tocante ao pedido de concessão de medida liminar, “para que seja determinado o respeito às determinação dos governadores e prefeitos quanto ao funcionamento das atividades econômicas e as regras de aglomeração”.
A adoção constitucional do Estado Federal gravita em torno do princípio da autonomia das entidades federativas, que pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias.
Em relação à saúde e assistência pública, inclusive no tocante à organização do abastecimento alimentar, a Constituição Federal consagra, nos termos dos incisos II e IX, do artigo 23, a existência de competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Igualmente, nos termos do artigo 24, XII, o texto constitucional prevê competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde; permitindo, ainda, aos Municípios, nos termos do artigo 30, inciso II, a possibilidade de suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local; (…)”.
Em vista destas considerações não tenho dúvida nenhuma que a Câmara Municipal não é competente para editar um decreto legislativo que altera as regras estaduais de saúde pública, ainda que tenha como escopo salvar a economia da cidade. Nem tampouco este instrumento se mostra adequado para tal fim, uma vez que está fulminado pelo vício da inconstitucionalidade.
Rogério Paz Lima é Advogado especialista em Direito Municipal e Eleitoral. Pós-graduado em Direito Público.