Em meio à maior crise sanitária da História do Brasil, que hoje já deixa a marca de mais de 180 mil mortos, nos deparamos com mais uma crise política que abala a situação do Brasil frente aos seus investidores, no que se refere à confiabilidade do sistema de poder. Flávio Bolsonaro, objeto de uma investigação criminal, não é “filho do Presidente”. Este cargo não existe. Ele é, isto sim, um cidadão que ocupa o cargo de Senador da República, devendo, por um imperativo moral, ser UM exemplo. Ou O exemplo. Os relatórios produzidos pela ABIN para a defesa do Senador, juntamente com as pressões feitas por este órgão à Receita Federal, demonstram claramente uma situação de improbidade administrativa, uma infração das graves. Isto porque trata-se de uma investigação particular, e a ABIN é um órgão público, de governo.
É uma questão de confusão entre público e privado, tão recorrente na História do Brasil. O presidente considera ser o Estado. Já sabíamos disso quando foi disponibilizada ao público, por pedido da defesa do ex-ministro Sérgio Moro, a reunião do dia 22 de abril. O presidente, naquela reunião, disse com todas as palavras que não permitiria que fossem atingidos nem ele, nem sua família. Disse também contar com um serviço de informação particular. Só não disse que este serviço era da ABIN. Juntamente com o relatório produzido por uma empresa de comunicação ao Ministério da Economia, de Paulo Guedes, onde se define quem são e que medidas tomar em relação às personalidades públicas favoráveis ou opositoras ao governo, a situação se torna preocupante. Nos dois casos, ele usa como particular um serviço (ou recurso) que é público. Já pensou se a ABIN fosse usada para perseguir os opositores da lista? E se fosse o caso de se estender para qualquer opositor? Abre-se uma prerrogativa sem precedentes.
Engraçado que se apropriar do Estado de forma pessoal, ou personalista, é um dos elementos do chamado “marxismo cultural” – comunismo, em termos mais grosseiros – que o governo, através de sua ala “ideológica”, tanto critica. Não ofende perguntar: ele não era liberal? Como se dá isto, em que um liberal se apropria desta forma do Estado? E porque não há uma forte reação da sociedade civil diante desta situação? Será que o “gigante” adormeceu de novo?
Veja, se comparado ao impeachment de 1992 e de 2016 – Fernando Collor e Dilma Rousseff, respectivamente-, existem hoje acusações muito mais graves. Em 1992, o impeachment passou por temas relacionados à PC Farias, reformas na casa da Dinda, recebimentos de dinheiro ilegais via contas fantasma. Em 2016, a questão que se colocava era a das pedaladas fiscais. Miguel Reale Jr., diplomata e congressista ativamente envolvido nos dois processos, em entrevista recente ressalta que havia também acusações relacionadas à Corrupção na Petrobrás que, no entanto, não foram acatadas pelo presidente da Câmara de então, Eduardo Cunha, pois que essas acusações levavam em consideração os mandatos passados do Partido dos Trabalhadores, nos quais ele estava envolvido. Para além da falta de decoro exigida pelo cargo – demonstrada pelas ofensas principalmente aos jornalistas, bem como outros posicionamentos-, violação dos direitos individuais, do posicionamento em relação à crise sanitária, e até mesmo da participação em atos antidemocráticos que exigiam, principalmente, o fechamento do Supremo Tribunal Federal, agora nos deparamos com esse fato dos relatórios da ABIN à defesa de seu filho número 01.
Porque não vai adiante um novo processo de impeachment? Para Miguel Reale Jr, não pode ser questão de popularidade, visto que Dilma tinha números parecidos. Se justifica pelos presidentes da Câmara e do Senado serem políticos do DEM, que temem a posse de Mourão. Mourão, por ser mais comedido (o que não é difícil), seria um candidato forte à reeleição. Isto é, não vai adiante porque o problema é político. Eu acrescento que seja porque o impeachment é um processo muito traumático para a República. O sistema perde a credibilidade, perde a confiança. Faria mal para os mercados, principalmente o internacional. Para os cidadãos, há também o trauma psicológico: a impressão de que nada melhora, de que o impeachment da Dilma que tanto queriam não resolveu absolutamente nada. Isto sem contar que, de acordo com algumas pesquisas, Bolsonaro ainda é popular, enquanto a esquerda não tem força política suficiente para articular uma oposição nas ruas, um movimento da sociedade civil. Não há lideranças de oposição nacionais, como era um Lula de antigamente.
A sociedade civil vai se dissolvendo na medida em que vai havendo o crescimento e desenvolvimento dos partidos e outras instituições de representação (na ditadura, quando tinha pouca, a participação da sociedade civil era maior, conforme foi aumentando, esta participação vai diminuindo). Esta burocratização é “historicida”- como dizia um professor na graduação, no sentido de que mata a História. Aniquila a sociedade civil. Essas instituições, como a OAB, a FIESP, a CUT, entre outras, vão cada vez mais passando a representar seus próprios interesses e não os interesses das classes a que, teoricamente, se vinculam. É também uma questão de crise de representação. Por este motivo as eleições para presidência da Câmara e do Senado são tão importantes. A partir delas se poderá fazer uma nova avaliação da posição atual em que se encontra, politicamente, o Presidente da República.
(Os textos publicados na seção OPINIÃO não refletem, necessariamente, o que pensa ou defende o Diário de Goiás e são uma contribuição ao debate do interesse público)