Na semana passada, me deparei com um vídeo compartilhado à exaustão nas redes sociais e também por grandes veículos de imprensa. No momento que terminei de assisti-lo, senti uma náusea que há muito tempo não sentia. Num cenário deslumbrante da orla da Barra da Tijuca, palco de sensações intensas vivenciadas por quem ali busca algum refúgio ao som do mar, três elementos protagonizaram uma cena de terror, ao espancarem até a morte o congolês Moïse Mugenyi Kabagamb. Ao cobrar dois dias de salário não pagos pelo dono do quiosque Tropicália, foi sentenciado à morte.
O fato gerou uma intensa comoção em toda opinião pública nacional. Como de praxe em uma sociedade onde o descrédito com a Justiça é lei e a violação dos direitos humanos é tratada muitas vezes com naturalidade, não faltaram remediações covardes dos autores desta barbaridade na tentativa de justificar o que humanamente é injustificável em qualquer sociedade civilizada. Primeiro, a necessidade de desqualificar a vítima, ao alegarem que Moïse estava assaltando as pessoas nas redondezas do quiosque, que estava causando perturbação, que estava bêbado, que “sempre” arrumou confusão com banhistas e trabalhadores. Retóricas típicas de uma sociedade moldada na Casa Grande e que instrumentaliza o “jeitinho” até para endossar um assassinato.
Segundo, as alegações de que não tinham a intencionalidade de matar soam como sussurros de exaltação da impunidade. O jovem de 24 anos recebeu 39 pauladas de taco de beisebol. Foi imobilizado. Amarrado. Chutado. Não teve qualquer chance de reação. Um dos homicidas, Brendom Alexander, disse estar com a “consciência tranquila”. Aleson Fonseca, por sua vez, alegou que resolveu bater no congolês para “extravasar a raiva”. Alguns cidadãos que presenciaram a cena tentaram alertar a guarda civil municipal nas proximidades, que nada vez. Um teatro dos horrores, cujo palco na sociedade brasileira infelizmente não é nem sazonal.
Das chibatadas no pelourinho no período colonial, nos porões dos regimes ditatoriais, à ostensividade histórica das forças policiais, não podemos negar que a tortura é um componente político da realidade brasileira. Somos um dos países que mais lincham no mundo, segundo o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). Somente na região metropolitana de São Paulo, entre 1980 e 2006, foram registrados 1179 casos[1]. Ao mapear estas práticas nos últimos 60 anos no país, o estudo aprofundado de José de Souza Martins[2] constatou um dado pavoroso: cerca de um milhão de brasileiros participaram de ações ou tentativas de justiçamento.
E soma-se a este cenário conjuntural o componente xenofóbico no assassinato de Moïse. Imigrante refugiado do Congo, o jovem fugiu das condições de conflito civil em seu país buscando abrigo em outro país que historicamente pautou a segregação como ingrediente na lapidação de seus dilemas. A imigração africana somente foi admitida após a Constituição de 1988, quase 100 anos depois da primeira lei imigratória. Na época, as classes dominantes buscaram implantar uma política agressiva de embranquecimento buscando figurar no panteão dos países desenvolvidos[3]. O que vemos atualmente no país são refugiados tateando algum espaço no mercado de trabalho, passíveis de serem incorporados com menores salários e sob péssimas condições laborais. Moïse Mugenyi Kabagamb foi buscar o que era seu por direito. E recebeu a hostilidade de um país que, sob a tutela de alguns péssimos exemplos, custa a amadurecer para a civilidade.
[1] https://nev.prp.usp.br/dados/linchamentos/
[2] MARTINS. José de Souza. Linchamentos: a Justiça Popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.[3] Para um maior aprofundamento sobre o tema, recomendo a leitura do excelente artigo escrito por Leonardo Sacramento “O mito do Brasil acolhedor de imigrantes”. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-mito-do-brasil-acolhedor-de-imigrantes/
José Elias Domingos Costa Marques é mestre em Ciência Política pela UFSCar, doutor em Sociologia pela UFG e professor do Instituto Federal de Goiás. As opiniões deste texto, não refletem, necessariamente, as do jornal.