28 de agosto de 2024
Opinião
Publicado em • atualizado em 07/03/2022 às 10:36

Mamãefalei não é só machista; ele odeia os pobres

Deputado estadual de SP, Arthur do Val (Foto: Alesp).
Deputado estadual de SP, Arthur do Val (Foto: Alesp).

Isso é o MBL. Eles não fazem outra coisa se não testar os limites. Não sei como a sociedade brasileira pôde aceitar sua existência, desde os xingamentos misóginos dirigidos à ex-presidente Dilma, lá em 2014, quando do seu início; até as recentes invasões a salas de aula para oprimir publicamente professores. Nós até denunciamos, mas a sociedade brasileira estava tão entorpecida pelo bolsonarismo, que acabamos aceitando. Hoje, encontram-se rejeitados por todos os lados, até mesmo pela própria direita. E com razão. Quem se mostra a favor dessa gente, é porque concorda e é igual a ela.

Este homem, Arthur do Val, deputado em São Paulo, em 4 áudios devidamente comprovados, mostrou o real interesse em ir para a Ucrânia em um contexto de guerra e violência: aparecer. Fez isso acompanhado de um outro sujeito do MBL que, segundo os próprios áudios, é especialista em turismo sexual na Europa. Os áudios em si são repugnantes, asquerosos. São de uma baixeza inesquecível. “Não peguei ninguém, mas poderia pegar, se quisesse”, é o que dá a entender a todo momento.

Agora, penso que a coisa seja ainda mais séria do que vieram a apontar as mídias, em geral. Acredito que a frase mais icônica, e talvez a que não se deu a devida atenção, dos áudios, seja esta: “elas são fáceis, porque são pobres”. E quando ele disse isso, se referiu ainda ao contexto: olhando para as refugiadas e refugiados, em fila. A essência de uma frase como esta está além do sexismo ou machismo pura e simplesmente. Essa ótica, acredito, se tomada única e exclusivamente, reduz o problema. O machismo e o sexismo são apenas a cobertura, a aparência de algo mais profundo: o ódio que essa classe média, estereotipada mesmo, tem para com todos os pobres.

Ele não manifestou outra coisa do que a libido pelas pessoas que estão em condição de fraqueza, de humilhação, de vulnerabilidade. “São fáceis, porque são pobres”… O que está em jogo é justamente uma condição, o pobre (literalmente foi o que ele disse), não uma pessoa. Se ignorarmos isso, perdemos tudo o que aprendemos com a sociologia. Ele começou a olhar as pessoas não como pessoas, mas como elementos dos quais ele poderia dispor, se quisesse. E só não dispôs, porque não quis. “Se eu quiser, posso fazer eles fazerem a minha vontade”, é o problema. É o real sentimento.

Imagine como ele olhou para as pessoas no momento em que elas estavam sofrendo, para poder dizer essas atrocidades. Elas estavam na fila dos refugiados, foi o que ele mesmo apontou. Ali, em contrapartida, as pessoas não estão absolutamente com libido nenhum. Abandonaram entes queridos, amigos, casas, trabalho, escola, toda uma vida social e cultural, seu próprio país. Encontram-se órfãs de tudo. O sofrimento humano, ali, pouco importa. O que ele vê, nessa ocasião, é gente disponível, a seu dispor. Basta apenas que ele queira. É o que a classe média faz com a empregada na cozinha, ou com o empregado na fábrica.

Não pense você que os áudios se justificam apenas pelo fato de serem mulheres. É, além disso, uma opressão sobre os pobres. A libido de Arthur do Val não foi por mulher. Foi por vulnerabilidade. Quando ele vê a humilhação, a vulnerabilidade, ele se sente vivo, se sente alguém. Não é só “eu quero ser mais macho, ser homem, ser acima da mulher”. É “eu quero ser, enquanto você é não-ser”.

É isso que estava presente em 2014 nas ruas: esse pessoal de amarelo, lutando contra os avanços da classe pobre no consumo, e a ampliação de suas oportunidades. Muitos deles, acompanhados das babás de seus filhos nas manifestações.

Perceba que a médica, sua namorada, pelas postagens que fez nas redes sociais, terminando com ele antes mesmo que ele soubesse disso, pareceu não ter conhecimento deste aspecto da personalidade dele. Ela, provavelmente, nunca tenha escutado ele falar coisas desse nível. Eu acredito sim que isso seja possível. Que seja possível que ele não ataque todas as mulheres. Que ele ataque somente as mulheres pobres. Que quando ele se deparou com todas aquelas pessoas refugiadas, enquanto ele estava em uma situação mais favorável, a de extrangeiro livre, com dinheiro no bolso, podendo se hospedar em hotéis, ele tenha se sentido alguém.

E sua resposta ao seu “cancelamento”, quando de sua volta, é um exemplo disso. Arthur do Val, pelos vídeos que publicou no Instagram, considera que o problema do que ele falou na Ucrânia, tenha sido o fato de o conteúdo das mensagens vazar. Ele considera que seu erro tenha sido palavras e expressões exageradas. “Usei expressões e exagerei, como muitos homens fazem.[…] E esses áudios vazaram, infelizmente, e fico triste por vocês terem visto isso”, ele argumentou. Ele diz mesmo, com todas as palavras, que cometeu um exagero. Que homens, depois do futebol, falam mesmo essas coisas… Perceba como nossa tarefa é difícil. Não é combater o que homens falam depois do futebol, mas combater uma toda uma herança histórica de ódio aos pobres, ou aos vulneráveis.

É sobre isso que se trata a obra do professor Jessé Souza, principalmente seu livro “A Elite do Atraso”. Apresenta-se uma nova ótica sobre as causas da desigualdade que nos assola como herança histórica de nossa sociedade, representada pelo ódio aos pobres: a escravidão.

Naquele contexto histórico, com ausência de um Estado centralizado, a autoridade máxima era o senhor de engenho. Sob responsabilidade dele estava o funcionamento da sociedade. Ele poderia dispor sobre os corpos de tanto quanto quisessem: das esposas, dos filhos, dos funcionários livres, dos escravos e escravas. A figura da elite, correspondente ao patriarca, pôde se desenvolver sem limites ou resistências materiais ou simbólicas.

É precisamente em uma sociedade como esta que se consolida historicamente uma patologia social específica, em que a dor dos outros, o não exercício de alteridade e a perversão do prazer transformam-se em realidade máxima das relações interpessoais.

Recomendo este livro e, além dele, a leitura da parábola do bom samaritano. Já que esse pessoal se diz tão cristão.

Professor de História, mestre e doutorando em História Política pela UFG

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