O ambiente da informação no Brasil sofreu revezes inacreditáveis sob Bolsonaro. A liberdade de Imprensa retroagiu décadas. O jornalismo tornou-se atividade de risco e a imprensa é rotulada de ‘inimiga do Estado’. A desinformação, em sentido oposto, prosperou como estratégia de mobilização de milícias, digitais e armadas, associadas ao propósito fascista do grupo de fanáticos que dá suporte ao presidente. Restaurar a precedência da verdade e reincorporar a informação ao ecossistema da real liberdade de expressão no país é a tarefa inadiável dos democratas.
Aos fatos: no cercadinho do Alvorada, os jornalistas são agredidos com contumácia planejada pelo presidente da República; a instituição, não o indivíduo Bolsonaro. A simbologia do gesto é importante posto que a atitude da maior autoridade da nação incentiva e autoriza cada cidadão a agredir a imprensa na sua jurisdição. Esse fenômeno legitimamente bolsonarista intensificou-se assustadoramente na pandemia, registre-se.
Há vários propósitos nessa ação. Dois, no entanto, são os mais relevantes para esta análise. Primeiro, constranger o jornalismo essencial, livre e questionador, diante de um governo que tem seríssimas deficiências éticas e administrativas. Segundo, desacreditar a imprensa tradicional e livre para desviar a atenção dos cidadãos para os meios digitais de disseminação de (des) informação, em sua maioria canais sabidamente controlados e incentivados pela estrutura bolsonarista.
O resultado imediato da artilharia sobre a imprensa é a degeneração do ambiente de trabalho para o profissional do jornalismo
O jornalismo no Brasil tem se tornado a cada dia uma profissão de risco. O tradicional relatório “Violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil”, produzido pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), traz dados alarmantes. Em 2019, ano da ascensão de Bolsonaro, os episódios de violência subiram 54%, para 208 casos, em relação ao ano anterior. Em 2021, o documento destaca impressionantes 430 atos atentatórios contra a segurança dos profissionais de imprensa. Sob Bolsonaro, a violência contra os jornalistas mais que triplicou.
Não por acaso o Brasil figura na desonrosa 110ª posição do ranking de liberdade de Imprensa da ONG Repórteres Sem Fronteiras. O discurso anti-imprensa cresce no mundo todo, pondere-se. Mas o caso do Brasil mereceu menção especial do relatório apresentado em 2022: “Cada vez mais visíveis e virulentos, os ataques públicos enfraquecem a profissão e incentivam ações legais abusivas, campanhas de difamação e intimidação, especialmente contra mulheres, e assédio online a jornalistas críticos.” A menção é explícita a Jair Bolsonaro. Assim como o faz a Fenaj ao compilar os dados de violência contra os profissionais do jornalismo: “A continuidade das violações à liberdade de imprensa no Brasil está claramente associada à ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República”.
Só isso, não há dúvida, já seria o suficiente para impor que os democratas se unam pelo respeito à liberdade de imprensa, um princípio afiliado à liberdade de expressão.
Há mais, bem mais, porém! Desacreditar a imprensa é semear o campo da desinformação em uma quadra onde a pós-verdade se apresenta como o fertilizante do autoritarismo. A luta pela primazia da verdade envolve mais do que proteger o bom jornalismo. Implica sedimentar na sociedade a supremacia do real como imperativo categórico, ético, a desentranhar nosso caráter enquanto indivíduos e sociedade.
Faz-se necessário reconhecer – e repudiar – que a mentira tornou-se perigosa e conscientemente uma ferramenta da guerra ideológica quando jamais, no mínimo, dever-se-ia tolerá-la como arma lícita de luta política, contemporizada até mesmo no campo progressista, estrato que mais se enreda dela. Hoje as fake news são compartilhadas conscientemente! E isso impõe um desafio maior que simplesmente interromper a difusão de informação falsa. Exige resgatar a verdade como um dever civilizatório!
A criminalização e a interrupção do financiamento dos canais de desinformação já seriam, no entanto, um excelente (e inadiável) começo. Pesquisa do professor Pablo Ortellado, da USP, chegou à insólita conclusão de que oito das 10 notícias mais lidas nas redes de mensagens instantâneas (WhatsApp e Telegram) diariamente são falsas, para se ter ideia do quão deletério é seu impacto. Conteúdos que, não menos grave, são produzidos e disseminados em redes digitais, acobertadas pelas políticas de privacidade das big techs, quando não por elas financiadas.
O arsenal da tentativa de golpe incorpora a monetização da mentira, com o silêncio obsequioso das grandes multinacionais de tecnologia. Espanta a condescendência das empresas. Mais sério, porém, é a inércia de pilares institucionais, das autoridades executiva e legislativa, quando se tolera ataques orquestrados ao sistema eleitoral brasileiro, o mais aclamado do mundo, bombardeado por desinformação a ameaçar o próprio Estado de Direito.
Daí a importância de ofertar amplo suporte social às iniciativas do Poder Judiciário quando este submete a um mínimo controle a difusão de desinformações por meio das redes sociais, já que o projeto de lei das fake news (PL 2630/2020), ao oferecer espécie de imunidade aos parlamentares, degenerou para que se utilize licitamente a mentira e a desinformação como meio de se colher votos.
Portanto, bem informar é urgente e necessário! Urge firmar na sociedade um pacto de decência pelo resgate da verdade. Restituir a credibilidade do jornalismo e a liberdade da imprensa como bens de democracia é nada menos do que imprescindível. E é para agora! As eleições deste ano estão cercadas de grande expectativa e apreensão, posto que serão decisivamente influenciadas pela desinformação. Do escrutínio de outubro emergirá um país. Que venha a nação que queremos; que seja um Brasil de verdade!
Realle Palazzo-Martini é jornalista e coordenador de Formulação do Direitos Já! Fórum pela Democracia