A violência significa violação dos direitos de propriedade: seja da propriedade natural dos indivíduos sobre sua própria pessoa, seja da propriedade legitimamente adquirida através do trabalho ou das trocas de mercado. Antes de representar um reflexo inconsciente e desinteressado, a violência, cujo o caso extremo é o terrorismo, é muitas vezes propositalmente utilizada como um mero instrumento, uma das ferramentas disponíveis para a satisfação de objetivos precisos. Quando concebida como instrumento político, a violência responde a ambições políticas de indivíduos ou grupos de indivíduos: ela envolve a satisfação de uma estratégia política pré-determinada.
Nos campos e mais recentemente nas cidades brasileiras, como evidenciou o episódio recente perpetuado na cidade de Goiânia e na sede da Organização Jaime Câmara, a violência e a intimidação exercidas pelos movimentos pró-reforma agrária adquiriu status de instrumento político. A ameaça de invasão exercida por estes grupos faz com que proprietários vivam sob ameaça e constante insegurança, temendo que seja violada a livre disposição de seus bens, por mais que tenham sido adquiridos de maneira honesta e legítima.
A violência nestes casos é política pois o atentado contra a propriedade atende à procura de fins e objetivos políticos, ou seja, obter a implementação de decisões políticas favoráveis e que beneficiem determinados grupos organizados. No Brasil, sobretudo ao longo destas duas últimas décadas e não ocasional e coincidentemente com sucessivos mandatos de governos de esquerda na esfera federal, a violência implementada por grupos como o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] foi em alguma escala banalizada, foi institucionalmente politizada.
A “luta” empreendida por estes movimentos é apenas uma ferramenta política buscando satisfazer interesses materiais e políticos, e nos casos mais recentes, o objetivo é sobretudo defender os interesses dos diversos órgãos, organismos e instituições que financiam e perpetuam a própria existência dos movimentos. Embora os movimentos pró-reforma agrária representem uma parcela muito pequena da sociedade, o sucesso de sua empreitada política e de sua influência pode ser consideravelmente potencializado pela ação dos meios de comunicação e pelos fenômenos de mídia mas, sobretudo, pelo apoio de órgãos governamentais e pela instrumentalização de seu discurso por grandes partidos políticos.
Ou seja, essa “luta pela terra” no Brasil é apenas o resultado de um conjunto de fatores implicando diretamente a ação dos participantes envolvidos em disputas políticas, e não remete unicamente à questão agrária. As ações e decisões tomadas pelos sucessivos governos brasileiros ao longo das últimas décadas têm conferido legitimidade à pretensão dos movimentos ao desapropriar fazendas ocupadas, ao redistribuir terras, ao financiar massivamente todas as ações dos movimentos e alinhar minuciosamente suas pautas políticas às próprias pautas do governo.
Temos um cenário onde grupos como o MST se tornaram, efetivamente, e sem qualquer exagero, braços armados e paralelos do governo federal petista prontos para intervir lá onde exista qualquer sinal – mesmo que meramente simbólico ou hipotético – de contrariedade para com as diretivas políticas e objetivos governamentais. No caso da invasão da sede da Organização Jaime Câmara, as pichações propondo “não haverá golpe” são uma demonstração inquestionável.
O governo brasileiro tem implicação direta no surgimento, expansão e perpetuação dos movimentos de “luta pela terra” enquanto poder político paralelo.
A incapacidade de lidar adequadamente com os embates envolvendo episódios de violência deliberada, as sucessivas invasões e instalações de acampamentos sem prevalecimento da devida punição, as sucessivas decisões de desapropriação de terras e a ausência implicam diretamente na potencialização do emprego do instrumento da violência pelos movimentos. A falta de segurança jurídico-policial e a incapacidade de se fazer respeitar a ordem da propriedade privada ajudou na banalização e desrespeito sistemático da propriedade privada pelos movimentos: não existe punição, existe crescimento das verbas, terras e poderes conferidos.
Através da ação de órgãos como o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], o governo utiliza-se da ação dos movimentos para direcionar e executar diretrizes em matéria de reforma agrária de forma que estes organismos vivem em uma espécie de dependência e mútua coordenação de suas atividades. O Incra e os movimentos têm um vínculo estreito e laços de cooperação e dependência relativamente bem consolidados: mais violência, mais políticas favoráveis e privilégios. Além do já citado e efetivo alinhamento político para com as diretivas do governo, a instrumentalização política desses movimentos envolve ainda a captura de órgãos regulamentários federais, o que termina também colaborando para com a perpetuação dos conflitos e banalização do uso da violência em nossas comunidades.
Curiosamente, e contrariamente ao senso comum, não existiria a priori e ex-ante uma massa de “trabalhadores sem terra” ansiando acesso à terra: os movimentos criaram a demanda por terra ao convidar trabalhadores para invadir e ocupar fazendas e propriedades e participarem de suas ações políticas. São os movimentos que abrem a possibilidade de acesso aos bens econômicos, aos privilégios legais ou facilidades as quais não dispõem os demais cidadãos das nossas comunidades: os próprios trabalhadores nunca haviam pensado em obter vantagens pessoais pela invasão ou pelo uso da violência. Esse processo passa pela corrupção moral e pela manipulação de uma ideologia essencialmente violenta e doutrinária, geralmente representada nos ideais socialistas.
Como explicou muito bem a socióloga Lygia Sigaud, a própria “caracterização oficial” dos indivíduos depende da deliberação dos movimentos: os indivíduos passam a ser considerados “sem terra” – se é que esta expressão também tem alguma espécie de sentido e coerência, penso eu – uma vez que integram acampamentos e executam invasões ou ordens políticas edificadas pelos cabeças da organização, esses tendo estreito relacionamento tanto com órgãos federais – ou federalizados – quanto com partidos interessados.
Finalmente, e encerrando este breve comentário representando uma espécie de nota pessoal de repúdio a esse sistema de perpetuação da violência em nossas comunidades, gostaria de chamar atenção para um último aspecto primordial e de ordem puramente jurídico-legal envolvendo a existência desses movimentos. Trata-se de algo que requer efetivamente uma reflexão e verdadeiro empenho da parte dos juristas brasileiros. Temos referência ao álibi de legitimidade conferido pelas inconsistências legais presentes no quadro institucional brasileiro, que fornecem respaldo não somente para a existência de organismos essencialmente violentos como o MST, mas também para diversas de suas ações.
Por um lado, ao descrever a necessidade de uma “função social” para o direito de propriedade, a Constituição de 1988 teria estimulado as invasões em propriedades consideradas “improdutivas” ou que não “correspondessem a sua função social”, seja lá o que queiram dizer estas expressões de fundamento estritamente duvidoso: os invasores e violadores se sentem, então, em qualquer escala amparados pela norma legal vigente no Brasil. Desse respaldo temos um álibi de legitimação da existência de tais movimentos e temos o risco perpétuo de ameaça generalizada sobre toda e qualquer propriedade. Uma norma desta natureza é algo essencialmente ameaçador para a ordem pública, como o próprio episódio desta noite de terça-feira pôde experimentar as consequências mais visíveis.
E por outro lado, as cortes e tribunais implicados na resolução das disputas judiciárias que envolvem os proprietários, invasores e o governo devem aplicar as leis previstas no Código Civil e reagir como fazem em qualquer outro caso de invasão e desrespeito aos direitos de propriedade, ou seja: devem dar respaldo aos proprietários e colocar à sua disposição os meios necessários para que sejam restituídas as posses e devida soberania sobre suas propriedades. Ultimamente o que mais vemos é que os órgãos responsáveis pela segurança policial, jurídica e institucional têm bastante reticência ou receio em fazer executar a lei.
Paradoxalmente, em despeito dessa brecha legal e da insuficiência de valorização da instituição da propriedade no Brasil, ambos os lados da disputa encontram, então, desta forma, “justificações legais” ou justificativas aparentemente equiparáveis para suas ações e defesa de seus interesses. E isto é um absurdo sob qualquer ponto de vista: agressores jamais podem ter as mesmas prerrogativas legais que as vítimas de agressão em qualquer ordenamento jurídico civilizado. A Constituição de 1988 legitima de alguma forma a invasão e uso de violência pelos movimentos e o Código Civil protege e justifica com razão a resistência dos proprietários que veem suas propriedades serem invadidas.
As invasões, impulsionadas por todos esses fatores mencionados, aparecem como um indício evidente de que a violência continua sendo um meio político fortemente instrumentalizado no Brasil. Certamente algo que não deveria nos dar orgulho, para não dizer mais. A violência permanece fazendo com que os fins perseguidos por estes que a empregam e privilegiam este meio de ação sejam devidamente atingidos. No caso dessa semana, a simples sinalização de prevalecimento da ordem da ameaça.
[i] Sigaud, L., As condições de possibilidade das ocupações de terra, Tempo Social: revista de sociologia da USP, vol. 17(1), p. 255-280, 2005.
Mateus Bernardino é empresário e economista formado pela Universidade de Paris I Panthéon Sorbonne
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