Todo fim de ano carrega uma atmosfera singular. As ruas se iluminam, as casas se enfeitam, e palavras como esperança, renovação, amor e recomeço passam a circular com mais força. O Natal nos convida ao encontro; o Ano Novo, à possibilidade de mudança. E talvez seja justamente nesse intervalo simbólico entre um ano que termina e outro que começa que surja uma oportunidade preciosa: olhar para dentro e reconhecer que, além dos desafios econômicos e sociais, existe um campo essencial — e plenamente transformável — que precisa de atenção urgente: o dos afetos.
Cresci, como muitos da minha geração, acreditando que a maior ferida da humanidade era a desigualdade social. Ela estava nos livros, nos jornais impressos, nas conversas familiares e nos debates escolares. Falava-se de renda, miséria, concentração de riqueza. E não há dúvida de que esse continua sendo um problema sério. No entanto, ao longo das últimas décadas, políticas públicas, iniciativas sociais e coletivas mostraram que é possível reduzir a miséria absoluta. Ainda que um pouco distante do extermínio total, avançamos. Isso revela algo fundamental: quando a humanidade decide agir de forma consciente e coletiva, ela é capaz de mudar realidades.
Enquanto esse movimento acontecia, um outro abismo foi se abrindo de maneira silenciosa — menos visível, menos mensurável, mas profundamente impactante: a desigualdade afetiva e emocional. Diferente da econômica, ela não aparece em estatísticas claras, mas se manifesta no esgotamento, na solidão, na dificuldade crescente de sentir, sustentar emoções e construir vínculos profundos.
Vivemos tempos acelerados, marcados por excesso de estímulos, informações e demandas. A Neurociência tem mostrado que o cérebro humano não foi projetado para esse nível contínuo de hiperestimulação. Quando estamos permanentemente em estado de alerta, ativando circuitos de estresse e sobrevivência, reduzimos a capacidade de acessar áreas cerebrais relacionadas à empatia, à autorregulação emocional e à conexão social. Em outras palavras: não é que tenhamos deixado de sentir por escolha moral; muitas vezes, nosso sistema nervoso está simplesmente sobrecarregado.
O filósofo Byung-Chul Han descreve esse fenômeno como uma espécie de anestesia coletiva. E a ciência ajuda a explicar: diante do excesso, o cérebro busca atalhos. Evitar a dor, suprimir emoções, acelerar processos. O problema é que, ao tentar eliminar o sofrimento, acabamos também amortecendo a alegria, o encantamento e a presença.
O fim de ano escancara esse paradoxo. Nunca falamos tanto em felicidade — e nunca pareceu tão difícil sustentá-la. Muitas vezes, mostramos alegria antes mesmo de experimentá-la. Mas há uma boa notícia: o cérebro é plástico. Estudos comprovam que nossas conexões neurais se reorganizam a partir das experiências que vivemos repetidamente. Isso significa que sentir é algo que pode ser reaprendido.
Um dia simples pode ser extraordinário quando vivido por inteiro. Um mergulho no mar, uma brincadeira, um olhar atento ativa circuitos cerebrais ligados ao prazer, à segurança e ao vínculo. Não por acaso, o afeto consistente é um dos principais reguladores do desenvolvimento emocional saudável.
É verdade que as telas ocuparam espaços importantes e que, muitas vezes, terceirizamos aquilo que exige presença, escuta e tempo. No entanto, também é verdade que nunca tivemos tanto acesso à informação, à ciência e à consciência sobre o impacto dessas escolhas. Sabemos hoje que relações seguras regulam o sistema nervoso, que o vínculo protege a saúde mental e que emoções não acolhidas tendem a se manifestar no corpo e no comportamento.
Encurtar o abismo emocional não exige soluções complexas ou tecnológicas. Exige humanidade. Exige adultos emocionalmente disponíveis, capazes de sustentar frustrações, tristezas e silêncios — próprios e alheios. Exige presença real, não apenas física. Pequenos gestos cotidianos, como ouvir sem pressa, acolher sem julgar e permitir-se sentir, têm impacto direto na organização emocional e cerebral de crianças e adultos.
Que este Natal seja mais do que uma data no calendário. Que seja um convite à reconexão — consigo e com o outro. Que o Ano Novo não traga apenas metas e resoluções, mas também a intenção consciente de cuidar dos afetos, respeitar os limites do corpo e do cérebro, e criar ambientes emocionalmente mais seguros.
Talvez não possamos mudar o mundo inteiro de uma vez. Mas a Neurociência nos lembra que cada experiência conta, cada vínculo importa e cada escolha repetida molda quem nos tornamos. Construir pontes emocionais é possível. E quando os afetos encontram passagem, a esperança deixa de ser promessa distante e passa a ser uma experiência viva, concreta e transformadora.
Que o próximo ciclo nos encontre mais conscientes do impacto que nossas relações têm sobre o cérebro, as emoções e os nossos resultados.
Neurocientista, doutora pela UNICAMP/SP. Palestrante e pesquisadora na área de Comportamento e Desenvolvimento Humano. Mentora em Autoliderança Estratégica.


Luís Carlos Bordoni
Rogério Paz Lima
Luiz Carlos Bordoni