A corrosão da imagem pública é um dos meus temas prediletos, nos estudos acadêmicos. Personalidades políticas e organizações empresariais, que gastam rios de dinheiro e enorme esforço para soerguer e consolidar uma imagem positiva, junto a seus públicos de interesse, repentinamente se veem envolvidos em denúncias e acusações, e suas imagens e marcas – produtos simbólicos de valor às vezes incalculável – deterioram a olhos vistos.
Desde o mês de março, assistimos isso acontecer com o agora ex-Senador Demóstenes Torres, político que, ao longo de seu primeiro mandato, construiu uma reputação invejável e estava sendo cotado para postos raramente ocupados por goianos, como a candidatura à Presidência da República, em oposição à hegemonia do PT (apenas o atual deputado federal Ronaldo Caiado conseguira isso na história recente do Brasil). O escândalo Cachoeira caiu como uma bomba no colo de Demóstenes e causou-lhe um dano de imagem cuja recuperação é dificílima, e cujo enorme prejuízo pessoal, político e profissional consolidou-se na tarde deste 11 de julho, com a cassação de seu mandato, por esmagadora maioria dos votos do Plenário do Senado Federal.
Como compreender estas crises, do ponto de vista das condições de visibilidade pública na jovem democracia brasileira? Até que ponto os personagens citados, envolvidos na crise Cachoeira, têm agido adequadamente, ante os desafios que se lhes impõe o escândalo?
A resposta a estas indagações não é simples, nem fácil, mas a reflexão sobre os casos que a motivam parece ser fundamental, sobretudo para aqueles que buscam manter carreiras sólidas no pantanoso e imprevisível espaço da política, dentro do ambiente democrático contemporâneo, altamente capilarizado por tecnologias de comunicação.
Importante dizer que meu parti pris é a questão da visibilidade pública da política, e não a política inteira; em outras palavras, falaremos de comunicação política, no âmbito da imagem pública, e não de outras coisas, nem mesmo o juízo a respeito dos fatos, já que o caso ainda não transitou em julgado. Declaro ainda que as análises aqui apresentadas não correspondem a nenhuma adesão política, e se baseiam em pesquisa e observação especializada dos fatos e opiniões em circulação.
O primeiro Demóstenes
Demóstenes Torres não foi um parlamentar qualquer. Trata-se de um homem altivo, orgulhoso, seguro de si e dono de uma reputação inquestionável no campo jurídico, haurido da carreira vitoriosa como promotor público e procurador de justiça do Estado de Goiás, antes de aceitar o convite do governador Marconi Perillo e entrar para a vida política, como Secretário da Segurança Pública.
Sua primeira eleição ao Senado só foi possível graças à força eleitoral do então governador Marconi Perillo, tranquilamente reeleito após um primeiro mandato no qual obtivera larga aprovação. Como tantos que anteriormente foram guindados a esse cargo, era de se esperar que fosse apenas mais um, no Senado, na pequena representação de Goiás na mais alta câmara legislativa do país.
Exerceu, contudo, um mandato incomum. Despontou como um jurista de grande competência e como orador contundente e audaz, qualidades raramente encontradas juntas num único parlamentar. Por onde passou, no árduo terreno da formulação legislativa, deixou marcas que significaram importantes contribuições às leis brasileiras, em vários setores. Além disso, demarcou com firmeza o terreno da oposição, numa conjuntura de larga aprovação do governo federal, já sob a batuta de Luiz Inácio Lula da Silva.
Ante um desempenho dessa qualidade, adquiriu projeção nacional e tornou-se um dos parlamentares mais influentes da República. O mais significativo reconhecimento de seu trabalho veio da melhor forma possível, para um político: Demóstenes Torres foi consagrado em 2010, sendo reeleito com mais de dois milhões de votos, 758 mil à frente do Governador eleito. Se, em 2002, Marconi elegera Demóstenes, na eleição seguinte, Demóstenes contribuiu decisivamente para viabilizar a vitória eleitoral apertadíssima de Marconi sobre Íris Rezende.
Cacifado, retornou ao Congresso com a veemência de sempre, mantendo o modelo que o consagrara. Sua audácia parecia sem fim; em novembro passado, acusou no Plenário uma das mais velhas raposas políticas do país, o Senador José Sarney, Presidente do Senado Federal, de ter agido de maneira “torpe”. A acusação soou de tal maneira na alma do velho político, que este exigiu que Demóstenes retirasse o adjetivo de suas declarações e das notas taquigráficas.
Os produtos dessa consagração logo se fizeram sentir. No ano seguinte, 2011, passou a ser fortemente cogitado a se candidatar à Prefeitura de Goiânia, já que obtivera na capital goiana uma expressiva votação, à revelia de seu principal aliado, Marconi Perillo, que amargou uma quantidade de votos menor do que seu adversário, o ex-prefeito Íris Rezende Machado. Demóstenes recusou olimpicamente a oferta, pois se dizia que já montara à época o projeto nacional, de liderar as oposições a Dilma até as eleições de 2014, numa forte candidatura presidencial, ou, talvez mais confortavelmente, receber uma indicação para uma das cadeiras do STF.
Esta breve exposição dos elementos que compõem uma história que todos já sabem apenas serve para refletirmos a extensão e a grandeza da perda de Demóstenes Torres. Perda para ele, que viu a reputação ser reduzida a frangalhos; e perda para o país, que deixou de ter um senador atuante e destemido, cassado pelos próprios pares. Parece-me fundamental, neste caso, que os políticos em geral compreendam que tais perdas, por tão grandes e profundas, não valem a pena, ante as possibilidades históricas que o país lhes apresenta.
O atual Demóstenes
Um desgaste de imagem percorre usualmente três fases bastante nítidas. A do boato, a da disseminação e da consolidação. A fase do boato é quando o relato negativo percorre caminhos individuais, conduzido pela relação face-a-face entre poucas pessoas. A fofoca, o comentário pernicioso, a crítica de pé de ouvido e as ofensas e conflitos pessoais constituem, isoladamente ou em conjunto, desgastes desse tipo. A política específica para combater os boatos isolados é percorrer o caminho inverso da conversa, desfazendo individualmente as impressões negativas que dela decorrem. Extintas as fontes, desarticulam-se as propriedades nocivas que o boato poderia produzir sobre a imagem.
A fase da disseminação ocorre quando a informação negativa ultrapassa o âmbito do face-a-face e chega às formas de comunicação de longo alcance e larga amplitude (chamadas, erroneamente, de “comunicação de massa”). Neste tipo incluem-se as denúncias e acusações publicadas em jornais e emissoras, capazes de gerar a apreensão e a desconfiança da população em relação à lisura da imagem daquele que a porta. Nesta condição, a pessoa ou instituição atingida deve avaliar de modo percuciente – se possível amparada em pesquisa preferencialmente qualitativa – se deve calar-se, aguardando o “esfriamento” ou o “esquecimento” do problema, ou se deve defender-se, nesse caso sempre em isonomia de condições com a disseminação.
A terceira e última fase do desgaste de imagem é a consolidação dos elementos negativos, de tal modo que passam a ser confundidos com a identidade do seu portador, como se os vícios e defeitos lhe fossem intrínsecos. Elementos de desgaste ou qualidades negativas consolidadas constituem imagens públicas que não se modificam a curto ou médio prazo, e sem um esforço considerável de seu portador. A política de imagem apropriada para estes casos é a de assumir a imagem desgastada e retirar dela os frutos possíveis, se possível modificando as propriedades do julgamento de negativo para positivo, ou, em alternativa, evitar-se o assunto, posicionando a propaganda em outras qualidades, estas sim, positivas. É assim, por exemplo, que um político visto como sovina pode ser considerado um administrador correto e rigoroso, conferindo-se uma nova significação à imagem já construída; ou, alternativamente, que um político considerado corrupto centra sua campanha em fatores diferentes da honestidade, como a capacidade de realizar, no famoso tipo do “rouba mas faz”, readquirindo assim sua viabilidade eleitoral.
O então senador Demóstenes Torres passou por estas três fases de forma muito veloz. A emergência das denúncias, em fevereiro deste ano, significaram imediatamente um desgaste de segundo tipo, ante o qual ele teria que reagir ignorando as acusações ou efetuando um forte pronunciamento. Sua preferência foi conhecida por todos: o famoso discurso de 6 de março, da tribuna do Senado, no qual foi aparteado por 44 senadores, todos perfilhando em sua defesa. Contudo, os dois objetivos fundamentais para isso não foram atingidos: primeiro, suas declarações teriam que ter o efeito de serem tão verdadeiras e autênticas, que não poderiam ser desmentidas; e, segundo, teriam que ser tão completas que não teriam como ser acrescentadas com novos elementos. Acréscimos prosseguiriam a indesejável corrosão de imagem e desmentidos o desmoralizariam, anulando os efeitos de contenção do pronunciamento. Em síntese, ele teria que “abrir as vísceras”, assumindo todos os riscos de quebra de imagem, mas tomando para si o controle da situação.
O que ocorreu é história. Da tribuna, ele jurou inocência plena, garantiu que nada seria encontrado nas escutas telefônicas e sequer admitiu conhecimento da contravenção praticada por Carlos Cachoeira. Em termos de contundência e eficácia, foi um discurso sem defeito: impactante e convincente, razão pela qual obteve o apoio explícito e público de mais da metade do Senado. Entretanto, o conteúdo, coerente com a imagem anteriormente construída, acabou não apresentando as condições de sustentação requeridas para a reversão do processo. Os vazamentos a conta-gotas das gravações telefônicas feitas pela Polícia Federal provocariam uma corrosão de imagem nunca vista, tal o seu efeito deletério, e tal a velocidade deste efeito.
Um dos episódios dignos de nota foi o comportamento do Democratas, o partido ao qual Demóstenes não apenas era filiado, mas cuja bancada no Senado liderava. Seguindo um roteiro tornado comum no partido e fundado, entre outros, pelo próprio Demóstenes, o DEM tem agido com rapidez aos casos de políticos do partido que são envolvidos em escândalos. Ao contrário de outros partidos, como o caso típico do PT, que respondeu com solidariedade aos acusados do Mensalão, o Democratas expulsa sumariamente seus integrantes suspeitos. Com Demóstenes não foi diferente e isso livrou o partido do sangramento de imagem ao qual o então Senador se viu exposto, criando as condições até para que aliados próximos seus, como o deputado federal Ronaldo Caiado, retomassem a bandeira da ética no discurso político. Enquanto isso, Demóstenes sangrou solitário ante o vazamento paulatino das degravações e permaneceu abandonado até a cassação.
Os vazamentos dos autos em sigilo de justiça na mídia nacional e pela internet constituem um caso específico, que ainda estou estudando. Indiscutivelmente, houve o costumeiro prejulgamento da mídia, no qual os indícios (escutas telefônicas gravadas pela investigação policial) são considerados como provas, e os citados passam a ser tidos como culpados até prova em contrário, quase sempre ao sabor dos posicionamentos políticos que as instituições brasileiras de mídia não raro imprimem ao jornalismo que fazem, sob a motivação econômica daqueles que as sustentam. Invariavelmente, pessoas apenas citadas nas gravações perderam cargos de confiança ou passaram a ser fortemente assediadas pela imprensa, tal a força consequente do escândalo. Isso, contudo, será tema de outro estudo que estou fazendo. Prossigamos no caso Demóstenes.
Ao efeito de acréscimo (novas acusações e fatos surgiram a cada semana) e de desmentido (a cada denúncia nova, foi se tornando patente para o juízo da opinião pública que o Senador faltara com a verdade), adicionou-se um efeito complementar, o sentimento de propagação da desmoralização assumido por todos os pares que o defenderam no início de março e que, por tal razão, se sentiram irremediavelmente traídos. As declarações que podem ser consideradas típicas nesse sentido foram feitas em tonalização emocionada pelo Senador Mário Couto, que, em várias oportunidades públicas, inclusive na sessão que votou a cassação, conjugou as palavras “amigo” e “traição”, expressando o sentimento de uma decepção profunda e dificilmente perdoável.
Este elemento determinou a vertiginosa entrada, em pouco mais de um mês da imagem de Demóstenes Torres no derradeiro tipo de desgaste – a consolidação da imagem negativa, que o tornou uma espécie de símbolo do político que mente a respeito de suas reais atividades e ilude a população, mostrando-se aquilo que não é; e o encaminhou de modo inevitável para o cadafalso da cassação exemplar, determinada em sessão de quórum praticamente completo (80 senadores presentes, apenas uma ausência) e a votação acachapante de 56 a 19, com cinco abstenções.
O episódio de passagem para o terceiro tipo de desgaste ocorreu no depoimento que Demóstenes prestou ao Conselho de Ética da Casa, ante o qual fora obrigado a admitir atitudes consideradas reprováveis – como a aceitação do famoso rádio Nextel, pago pelo contraventor. O desgaste de imagem, então, tornou-se irrecuperável, consolidado, sendo sua principal demonstração pública a sequência de pronunciamentos feitos para as cadeiras vazias do Plenário do Senado Federal e cobertos pela imprensa brasileira com o enfoque do esvaziamento político. O Senador Demóstenes expunha, para o país, sua imagem de político agonizante, cujos prestígio, credibilidade e influência haviam sido convertidos em pó.
É recuperável a imagem de Demóstenes?
Tivesse Demóstenes renunciado ao mandato, quando o processo estava em seu início, talvez escapasse à inelegibilidade e poderia, como o fizeram senadores antes dele e da promulgação da citada lei, trabalhar com mais facilidade a recuperação de imagem a partir de uma fase de menor desgaste e fora da atenção midiática ou, no mínimo, menos intensamente bombardeado por ela. Mas, esse não é mais o caso. O problema dele agora é administrar uma imagem negativa consolidada, sem os privilégios de foro, imunidade e visibilidade que detinha anteriormente.
As imagens negativas consolidadas são de difícil recuperação, especialmente quando os holofotes da mídia e da opinião pública concentram-se sobre elas, num processo contínuo de reforço e repisamento da destruição simbólica. Como afirmei acima, isso pode se dar, a curto prazo, pela assunção da imagem negativa, com propósito de reversão de seus significados, ou por omissão dos elementos deletérios, com a apresentação de outras qualidades que a recubram.
Em Demóstenes, não há vantagens em nenhuma das duas opções, pois a cassação, de acordo com a Lei Ficha Limpa – que ironicamente fora relatada por ele próprio, no Senado Federal –, o manterá inelegível até 2027, tornando inútil qualquer providência de prazo curto, em relação a sua imagem.
A saída para ele seria buscar a recuperação de imagem de longo prazo, pela confirmação da inocência, na Justiça, e pela reconstrução das relações em outros âmbitos, especialmente o profissional. Qualquer seja o caminho, sua trajetória deverá ser parcialmente coberta pela imprensa, por algum tempo, despontando aqui e acolá, especialmente se vier a sofrer novos revezes junto às instâncias pelas quais terá que passar, até que seja talvez esquecido.
Isso porque os olhares atentos da mídia agora passarão a se concentrar em outros personagens, na manutenção da cobertura do escândalo Cachoeira, como já ocorrera com o Governador Marconi Perillo, que administrou melhor do que Demóstenes o seu envolvimento com o escândalo, as denúncias e seus personagens, apesar de ter cometido graves erros iniciais de comunicação, sobre os quais falaremos em outro artigo.
Há hoje, ainda no clima da cassação do ex-Senador, indicações de que a bola da vez no Congresso Nacional é o deputado federal Carlos Alberto Leréia, do PSDB, amigo e parceiro confesso do contraventor. Os demais acusados, os deputados Sandes Júnior, Protógenes Queiroz e Rubens Otoni, tendem a ser ou já foram inocentados pela Casa. Sem dúvida que se alguém for punido agora, será o deputado Leréia. Mas, isso somente ocorrerá por razões políticas e sob intensa pressão da opinião pública, ou seja, caso o escândalo não esfrie e não seja superposto pelo corporativismo da Câmara dos Deputados.
Há também quem diga que o foco agora recairá sobre o suplente do ex-Senador, o milionário engenheiro Wilder Morais, cuja proximidade com Carlos Cachoeira parece ser ainda maior do que tinha Demóstenes, seja por ter supostamente enriquecido na relação com ele, seja por ter comprovadamente perdido a esposa para o contraventor (o que não configura crime algum, mas pode, sim, redundar em significativo dano de imagem). Caso as denúncias se avolumem a ponto do Senado reagir de novo, teremos o caso inédito do suplente de parlamentar cassado que poderá também ser lançado ao fosso da cassação.
Observe-se que, sedenta do sangue do primeiro acusado, o clamor público pode prosseguir em busca de novas cabeças a serem cortadas. É que os escândalos podem se reproduzir, seja em novos escândalos, seja por novos envolvimentos. E, ao que demonstra este caso recente, em tempos de internet tais episódios de deterioração de imagem são, ao mesmo tempo, extremamente velozes e bastante imprevisíveis, o que os torna dificilmente administráveis.