“Onde os democratas erraram?”, perguntou o presidente Lula durante a reunião da ONU sobre democracia. É uma pergunta provocadora — e absolutamente necessária.
Como alguém que vivenciou os bastidores da política brasileira, especialmente nos períodos mais turbulentos da nossa jovem democracia, arrisco aqui minha resposta: erramos na política, na linguagem, na ética e na omissão. E enquanto isso, a extrema direita se organizava.
A ascensão global da extrema direita não foi obra do acaso. Foi o resultado direto de erros acumulados por democratas e progressistas ao longo de décadas. Houve uma corrosão silenciosa das instituições representativas, um distanciamento crescente das bases populares e uma complacência irresponsável com práticas políticas desgastadas e pouco transparentes.
A eleição de Donald Trump em 2016 foi um marco — não apenas pelo que representou nos Estados Unidos, mas pelo que anunciou ao mundo: a extrema direita havia encontrado sua fórmula. Discurso antissistema, apelo emocional direto, manipulação da verdade e a construção de uma guerra cultural artificial. A partir dali, outros países passaram a experimentar variações desse mesmo modelo — e o Brasil foi um deles.
No nosso caso, o campo democrático foi cúmplice, ainda que inconscientemente, desse processo de degradação. O PSDB, partido do qual fui dirigente, cometeu um erro histórico ao questionar o resultado da eleição de 2014, pedindo auditoria das urnas eletrônicas sem qualquer indício sério de fraude. O TSE confirmou a lisura do processo, mas a dúvida plantada ali germinou. A extrema direita colheu os frutos dessa irresponsabilidade anos depois, transformando desconfiança em negação da realidade — e, por fim, em tentativa de golpe.
O fatídico 8 de janeiro de 2023 não surgiu do nada. Foi a consequência lógica de um movimento político que nega a ciência, ataca a imprensa, relativiza a ditadura, glorifica a violência, espalha fake news, despreza a ética, não tem projeto de governo e não aceita o resultado das urnas. A extrema direita provou, em todos os países em que chegou ao poder, ser o pior caminho que uma nação pode seguir.
No Brasil, ela destruiu políticas públicas, desmontou o SUS durante uma pandemia, sabotou a vacinação, incentivou a devastação ambiental e transformou o ódio em método de governo. Governou por impulsos e teorias conspiratórias, alimentando a divisão social e o autoritarismo. E tudo isso só foi possível porque o campo democrático abriu espaço, perdeu sua autoridade moral e falhou em se renovar.
Tentamos resolver crises políticas por atalhos institucionais, como no impeachment da presidenta Dilma Rousseff — um processo legal, sim, mas politicamente devastador. O próprio MDB, partido que havia indicado Michel Temer como vice-presidente na chapa de Dilma, articulou nos bastidores sua derrubada, rompendo com o governo e passando a atuar abertamente por sua substituição. Foi um gesto de traição política que aprofundou a crise institucional e acentuou a desconfiança da população nas instituições.
Naquele momento, o campo democrático se implodiu. A centro-esquerda e a centro-direita, ao invés de se unirem para preservar as bases republicanas, mergulharam em ataques mútuos e disputas autofágicas. O PSDB viu no impeachment uma oportunidade de enfraquecer o PT. O PT, por sua vez, endureceu posições e se isolou. O diálogo ruiu. As lideranças se fragmentaram. E do caco dessas disputas emergiu o espaço político que a extrema direita ocupou com voracidade. Sem lideranças sólidas e sem projeto comum, o campo democrático perdeu a narrativa — e o povo foi seduzido por quem dizia “falar a verdade” contra “tudo isso que está aí”.
Ignoramos a importância da linguagem política. Enquanto a extrema direita falava de forma simples e emocional com o povo, os democratas se perderam em discursos tecnocráticos e moralismos seletivos. A esquerda, muitas vezes, priorizou a lacração, a simbologia vazia e disputas internas, enquanto a direita ocupava os espaços digitais e formava militância.
Abandonamos o povo. A democracia brasileira nunca foi plenamente popular. Permaneceu elitista, cara, branca e concentrada nos grandes centros. Mesmo com governos progressistas por mais de duas décadas, mantivemos uma estrutura de exclusão: não fizemos uma reforma política, não democratizamos os meios de comunicação, não universalizamos a educação de qualidade nem implementamos uma reforma agrária ampla. O sistema seguiu representando o capital, não a cidadania.
Faltou autocrítica. Quando a eleição de 2018 exigia unidade e generosidade política, o que se viu foi cálculo eleitoral. O PT insistiu até o fim na candidatura de Lula, mesmo sabendo que ela era juridicamente inviável. Lançou Haddad tardiamente, sem tempo para costurar apoios amplos. Ciro Gomes, ressentido com razão, se ausentou do segundo turno, diante de uma ameaça real à democracia. O PSDB, por sua vez, naufragava sem rumo, dividido entre o antipetismo e a omissão.
Pagamos caro por tudo isso.
Hoje, é urgente compreender que os democratas não podem apenas administrar a democracia — precisam defendê-la, reimaginá-la e protegê-la de seus próprios pontos frágeis. É hora de parar de tratar a extrema direita como uma anomalia passageira ou como adversária convencional. Ela é, em essência, um projeto antidemocrático, golpista e reacionário, que precisa ser enfrentado não só nas urnas, mas no campo jurídico, institucional e cultural.
É fundamental discutir com a sociedade um novo arcabouço legal que fortaleça os pilares da democracia: que puna severamente o uso de desinformação para fins eleitorais, que responsabilize políticos por mentiras deliberadas, que regule as redes sociais de forma democrática e que limite o poder econômico sobre o processo eleitoral. Precisamos de uma democracia blindada contra o golpismo.
Mas também é preciso reconectar a política com o povo. Trazer os trabalhadores, os jovens, os indígenas, os negros e periféricos para o centro das decisões. Não basta defender a democracia — é preciso fazê-la funcionar para todos.
A pergunta de Lula exige mais do que reflexão. Exige coragem. Coragem para romper com o passado, abandonar alianças tóxicas, oxigenar a política com novas lideranças e assumir que a democracia que temos hoje não está à altura do que o povo brasileiro merece.
A extrema direita já mostrou ao que veio. Não podemos permitir que ela volte. Nunca mais.
Rodrigo Zani é empresário rural e consultor da Unicafes.


Rogério Paz Lima
Rafaela Veronezi