Sejamos sinceros. Independente de gostar ou não do Lula, gostar ou não do Dallagnol ou Sérgio Moro, é necessário reconhecer que este episódio da Lava Jato se tornou um ícone da História brasileira recente. Dallagnol foi condenado. Virou-se contra ele o que ele fazia com os outros, não só com o Lula. Ele, mesmo sendo alguém que entende bastante do assunto, quis passar a imagem indignado. Logo ele, que entende como se desenvolve o processo. E foi condenado a pagar uma indenização que, sabemos, para ele, não é tanto assim. 75 mil reais para um juiz, promotor ou para qualquer uma dessas autoridades da Justiça, não vale o mesmo que para nós, meros mortais.
É uma questão de formalidade, da própria estrutura que o cargo representa na República, se referir a Lula, ou qualquer um que tenha ocupado o cargo, de ex-presidente. Mas Dallagnol, achando ser superior não só ao Lula, mas a toda a sociedade – o que é típico da visão de mundo desta gente da Justiça, que acredita ter uma superioridade intelectual e moral, posto que “resolve” os problemas das pessoas “comuns” – fala como se estivesse em um boteco: “o cara (…)”.
Tudo bem, ele não é mais promotor e fala como um civil. Mas em uma situação formal, a liturgia do cargo de Presidente da República exige isso mesmo. Nós acreditamos nisso porque acreditamos na República. E se pararmos de acreditar nisso, podemos parar de acreditar em qualquer coisa. E não haverá mais sociedade, em última instância (risos). Monalisa, na CNN, foi correta do ponto de vista profissional: trate o presidente com a formalidade que a televisão, ainda mais um jornal de notícias, exige. Ela fez isso não em defesa de Lula, mas em defesa da República. As liturgias existem para que a República possa ser o que ela de fato nasceu pra ser: coisa pública, isto é, uma coisa que representa, ou que representou, a todos nós. Por isso, quando em um cargo público, Dallagnol deveria agir não por suas “convicções”, como foi o que ele, de fato, disse; mas pelas provas. É neste contexto que foi condenado pelos slides de powerpoint.
Hoje parece comum na ideologia do combate à corrupção, típico da classe média rastaquera – como diria o professor Jessé Souza –, o Estado como inimigo, ou como tudo o que há de mau, o que, na prática, se traduz na ideia de que deve-se tratar os políticos, principalmente os vinculados à esquerda, com desprezo e desrespeito. Isso não é dessacralização do poder, mas é estupidificação das ideias. A classe média recusa a ideia de luta de classes e transforma a política toda em roubar ou não roubar o Estado, e a população fica refém desse jogo de vilões ou heróis que a Lava Jato ajudou a criar. Ignora, inclusive, a corrupção do mercado. Só o Estado é o problema.
No entanto, hoje nós sabemos que Dallagnol trocava informações com Sérgio Moro, estando de comum acordo. O que, sabemos, não deveria ocorrer, pois Sérgio Moro era o juiz responsável por julgar o caso. Voltamos à questão da liturgia do cargo, e porque ela existe. Como não havia uma justificação formal, a justificativa se torna moral: convictos da culpabilidade de Lula, corrompem as formalidades do cargo porque acreditam que, extinguindo a corrupção, acabariam os problemas do país; tendo em vista ser este o problema da herança portuguesa ao Brasil, um país de desenvolvimento histórico menor, em vista com os Estados Unidos, por exemplo. É o que eles pensam. Por isso, para eles, o funcionalismo público deveria ser extinto; tudo deveria ser feito pela iniciativa privada; no mercado é que está a virtude. O Brasil, ao contrário, não é o mais corrupto do mundo, nem o menos. Está na média. É o que os dados, para além da ideologia de classe média de corrupção no Estado tenta nos convencer.
Por ser um verdadeiro ícone da moralidade, do cristianismo, até dinheiro cai na conta dele, sem que ele tenha revelado conta ou qualquer coisa que seja. O dinheiro literalmente caiu do céu, como uma graça divina. A justificativa dele é que tenham pegado o CPF dele na internet – onde? – e começaram a mandar pix. Ele pediu pra parar? Não. Sabemos que juízes não condenam indenizações que os condenados não possam pagar. E, por estar inserida no âmbito de uma condenação, o certo é ele prestar contas sobre este dinheiro. Ele poderá?
Percebe-se que os ícones da classe média estão em colapso. Mesmo Arthur do Val se articula perante os colegas, para que não perca o cargo de deputado, onde ele ganha lá seus trinta mil reais. Ora, por que ele não quer largar o osso do emprego público, sendo que sua ideologia é a do homem empreendedor, que odeia o papel que o Estado desempenha na Economia? E Dallagnol abandonou o cargo de promotor para entrar na iniciativa privada? Não. Para se candidatar. Sérgio Moro abandonou o cargo de juiz para ser ? Não. Para se tornar Ministro da Justiça e agora, quem sabe, presidente. É um círculo vicioso a ideologia desta gente: a corrupção está no Estado; mas nós queremos ser o Estado. Como entender a classe média?
Cristian de Paula Sales Moreira Junior é professor de História e mestre e doutorando em História Política pela UFG.